A nova vaga que não quer mudar o Dão

Seis jovens enólogos do Dão reúnem-se para falar do futuro e insistem no passado. Sinal de conformismo? Não. Testemunho de uma sensatez e de uma inteligência que os leva a dizer ao que vêm: vêm para acrescentar a uma base que produz alguns dos melhores vinhos do país.

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São jovens entre os 26 e os 30 anos, todos são originários da região ou têm lá as suas raízes familiares, licenciaram-se em Coimbra ou, na sua maioria, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, fizeram pós-graduações na Universidade de Ciências do Porto e decidiram instalar-se no Dão por oportunidade ou por herança, mas sempre por devoção. São cultos e dotados de conhecimentos científicos, mas não se vêem no papel de revolucionários dispostos a mudar o perfil dos vinhos do Dão num golpe de mágica. Sentem-se parte de uma nova geração, mas reconhecem que são tributários de uma herança antiga ou das mudanças que os seus antecessores produziram. Para eles, as vinhas do planalto ou das encostas são uma dádiva da natureza e do saber-fazer dos homens e mulheres, as castas são um privilégio, o perfil dos vinhos gerado pelo clima ou pelos solos graníticos e pobres um pergaminho aristocrático que se empenham em fazer evoluir, mas jamais em mudar.

Mafalda Perdigão, 26 anos, enóloga na sua quinta familiar e na Madre de Água, Rafael Formoso, 25 anos, desde 2013 responsável pelos surpreendentes vinhos da Adega da Corga, Rui Mateus, 27 anos, dono de seis hectares de vinhas e enólogo há três anos na Quinta da Ponte Pedrinha, Filipa Costa, 27 anos, enóloga na Adega Cooperativa de Silgueiros, José Oliveira, 26 anos, que integra o grupo de consultoria Vines and Wines, e João Cunha, 30 anos, responsável pelos vinhos da Ladeira da Santa fazem parte da nova vaga de jovens que escolheram o Dão como destino profissional. Sabem que são capazes de “fazer coisas diferentes”, como diz João Cunha, mas o que os move é antes de mais nada o “respeito pela autenticidade dos vinhos da nossa região”, como sublinha Mafalda Perdigão. Nesta atitude aparentemente defensiva há um propósito ambicioso: acelerar o caminho do Dão para um patamar equivalente ao que hoje é ocupado pelos vinhos do Douro ou do Alentejo no reconhecimento dos consumidores.

Essa crença tem por base a noção de que o Dão é uma região com características únicas, que exige palatos mais habituados à prova e desaconselha receitas comerciais baseadas na doçura, na madurez ou na ausência de ângulos. “Os enófilos vão fazendo o seu caminho. Começam no Alentejo, sobem ao Douro e quando descobrem o Dão ficam por cá, já não regressam, já não querem sair”, diz, confiante, Mafalda Perdigão. Manter níveis de exigência elevados para consumidores mais qualificados é, por isso, uma questão fundamental. Que passa pelo potencial de vinhas “que nos dão uvas muito equilibradas”, nota João Oliveira. É daí que sai “a mineralidade, a acidez e a frescura que distinguem a região”, nota Mafalda Perdigão. E, também, “a sua enorme capacidade de envelhecimento”, aponta Filipa Costa. “É uma região mais complicada para se gostar à primeira prova. Os vinhos têm mais acidez, a fruta pode ser menos exuberante, não são vinhos tão directos”, explica João Cunha.

Mafalda Perdigão, enóloga na sua quinta de família e na Madre de Água Nelson Garrido
João Oliveira integra o grupo de consultoria Vines and Wines Nelson Garrido
João Cunha, responsável pelos vinhos da Ladeira da Santa Nelson Garrido
Rafael Formoso, responsável pelos vinhos da Adega da Corga Nelson Garrido
Rui Mateus, enólogo na Quinta da Ponte Pedrinha Nelson Garrido
Filipa Costa, da Adega Cooperativa de Silgueiros Nelson Garrido
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Mafalda Perdigão, enóloga na sua quinta de família e na Madre de Água Nelson Garrido

No puzzle intrincado do Dão, onde há vinhas em solos graníticos e arenosos, nos planaltos, nas vertentes que descem para o rio ou nas faldas da Serra da Estrela, o potencial de diversidade é imenso. Os jovens enólogos afirmam que é a interpretação de cada uma destas microzonas que lhes permite fazer a diferença. “Temos de mostrar o que valemos, até porque somos beirões evoluídos”, nota Filipa Costa. Nem tanto na adega, onde todos dizem haver uma margem de manobra reduzida para a sua intervenção. Ou, como diz Rui Mateus, “se trabalharmos bem na vinha, a adega já está feita”. Em cada uma das sub-regiões e com cada uma das castas, tradicionais ou nem tanto, há um mundo novo a explorar. Se a base, a identidade e o carácter da região está definido, o seu propósito é ir mais longe no refinamento, na procura de facetas específicas de cada pequena mancha de videiras, de cada vinha.

Numa região de extremo minifúndio, nem sempre é fácil prestar a atenção que a vinha exige. “Faltam mais viticultores profissionais”, nota João Oliveira. O envelhecimento da população está no entanto a “promover uma selecção natural”, fazendo com que os profissionais que estão na região comprem ou arrendem parcelas mais pequenas e mais difíceis de gerir sob os actuais padrões de exigência. Neste processo lento de transformação, os jovens enólogos do Dão vislumbram uma parte do seu papel na região. Pela aprendizagem. E também pela preocupação em preservar o velho património regional. “Ainda um destes dias vi uma vinha com quatro hectares onde havia 22 castas, algumas das quais eu não conhecia”, diz João Oliveira. “Eu ando apaixonada pelas vinhas velhas”, diz por sua vez Mafalda Perdigão.

Nesta discussão sobre as vinhas é fundamental considerar a hierarquia das castas. Nenhum dos jovens enólogos discute o protagonismo que a Touriga Nacional tem hoje nos vinhos tintos nem o domínio que a casta Encruzado exerce nos vinhos brancos. Mas há nesta atitude a recusa de uma posição estática. “Não podemos ficar por aqui. Temos de sair da caixa. Precisamos de novos encruzados, de estudar bem todas as nossas castas”, diz João Oliveira. Membro de uma família que apostou forte na Touriga nas suas vinhas perto de Penalva do Castela, Rafael Formoso gostaria de ir mais além. “Toda a gente gosta de inovar”. O problema é o risco (financeiro, por exemplo). Sim, concorda Mafalda Perdigão, mas o risco tem de ser corrido. Na Quinta do Perdigão, por exemplo, há um lote de pé-franco de Touriga Nacional (a casta não foi enxertada num porta-enxertos resistente à filoxera) “que dá um vinho espectacular”, diz a enóloga.

Nos brancos, “há possibilidades de se fazer coisas boas com quase tudo”, nota João Cunha. Uma cooperativa como Silgueiros (ou Mangualde) consegue produzir um Encruzado de grande classe. Várias empresas seguem essa opção pelo Encruzado em versão varietal com grande sucesso. Mas há mais mundo para lá desta casta. Os jovens enólogos do Dão sustentam que, “em muitos casos”, o casamento com Malvasia Fina recomenda-se. E há mais a descobrir ou a redescobrir. “Fiz este ano um branco com Bical, Semillon, Gouveio e Encruzado e o resultado foi espectacular”, diz Mafalda Perdigão. “A Bical começa a ser muito respeitada no Dão”, acrescenta Mafalda. “Sempre foi”, atalha João Cunha. Todos concordam: é necessário rever a matéria dada.

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Nos tintos há consenso sobre a Touriga Nacional e sobre a Alfrocheiro. A Touriga Nacional é aliás reconhecida como a casta hegemónica da região. Depois, há menos consenso sobre a Jaen ou a Tinta Roriz. “O maior desafio da Jaen tem a ver com a data da vindima”, diz João Oliveira. Para este enólogo, esta casta mostra todo o seu potencial se for vindimada antes das outras variedades tintas. Ou seja, quando está em curso a vindima dos brancos. O que coloca um problema operacional para os produtores. É por isso que, na sua opinião, na maioria dos casos a Jaen apresenta normalmente “boas qualidades para um lote, mas isoladamente é um pouco plana”. Já a Alfrocheiro, “a casta mais difícil de trabalhar no Dão”, na opinião de João Oliveira, recolhe mais adeptos. “A Alfrocheiro é linda”, diz João Cunha. “Gosto muito do seu lado balsâmico”, acrescenta Mafalda Perdigão. Para lá de todas as potencialidades das castas do Dão, o lote continua a dominar a preferência dos jovens enólogos. “Sou muito mais apologista dos vinhos de lote porque ficam sempre mais enriquecidos pelas diferentes castas que utilizamos”, diz Rui Mateus.

Também aqui, a nova geração segue o padrão pré-existente. Um dos seus principais méritos está aliás na justiça que prestam aos enólogos e viticultores que, na geração anterior, abriram as portas do Dão à modernidade. “Há muitas pessoas às quais devemos muito do que somos hoje. O meu pai, o engenheiro Carlos Silva, o José Miguel, o João Paulo Gouveia, o Paulo Nunes, entre muitos outros”, diz Mafalda Perdigão. Ou Arlindo Cunha, o ainda presidente da Comissão de Viticultura do Dão (e pai do João Cunha), que “deu a volta à instituição”. Todos merecem elogios pelos trilhos que abriram ao Dão, pela afirmação de um perfil e de uma identidade, mas também por terem iniciado “a mentalidade de partilha” que “faz muita falta”, acrescenta Mafalda. “Eles fizeram a parte mais difícil”, reconhece Filipa Costa,

De resto, se há uma novidade na forma de estar desta geração é exactamente a noção de que partilhar experiências e resultados, transmitir sucessos e fracassos é bom para a região e, logo, para todos eles. Vir gente de fora fazer vinho para o Dão, como Jorge Moreira ou Dirk Niepoort, poderia ser objecto de ressentimento em outros tempos. Não agora. “Se eles vêm isso é sinal que a região tem potencial”, diz Mafalda Perdigão. E também porque “nos ajudam a abrir outras portas”, diz Rafael Formoso.

Desempoeirados, ambiciosos, devotamente beirões e convictos de que, no Dão, há um mundo de oportunidades e desafios, os novos enólogos da região sabem o que querem. E se querem muitas coisas, anunciam-no com uma prudência e um respeito pela herança que receberam que revela sensatez. De resto, a mesma sensatez que manifestam quando se lhes pergunta pelo vinho das suas vidas. Mafalda Perdigão responde por todos: “Não consigo dizer qual é. Ainda sou muito jovem para ter um vinho da minha vida”.

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