Roturas e consumos não cobrados roubam 30% da água das redes municipais

"Parte substancial das entidades gestoras municipais não sabe quanto custa a água ou quanto perdem”, assume o presidente da entidade reguladora da água e resíduos, Orlando Borges. Defende a “capacitação técnica” das empresas e o fim dos consumos gratuitos.

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Viseu: estação de tratamento da Águas do Planalto LUSA/Nuno Andre Ferreira

Os municípios cobram tarifas simbólicas ou não as cobram pela água que distribuem. Sem receita, não há dinheiro para investir em redes e sem investimento perde-se a água de que o país precisa. No bolo nacional, as perdas comerciais chegam aos 30%, mas a nível local há casos de 70% da água perdida entre roturas, infiltrações e consumos não cobrados.

Este desfiar de razões coloca o sector da água entre dois extremos, que vão de Aguiar da Beira a Boticas. O primeiro porque perde mais de 70% da água que entrou na sua rede e que estava pronta para consumo público, o outro porque regista apenas 2% de perdas. Pelo menos em 25 municípios mais de metade da água escapa-se pelos buracos das condutas e por infiltrações e outros 29 não estão muito melhor: perdem entre 40 e 50%. Apenas 15 conseguem ter perdas inferiores a 10%.

São contas que a base de dados da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR), acessível online, permite realizar a partir do último relatório anual dos serviços de águas e resíduos de 2016 (com dados de 2015). Constata-se, por exemplo, que não é possível saber o que se passa em mais de 20 municípios por não terem fornecido os dados necessários, um indicador frequente de que a situação é tanto ou mais preocupante.

É um risco ir mais além neste retrato do país que desperdiça a água de que precisa cada vez mais. A ERSAR, à qual as entidades gestoras reportam anualmente os valores, adverte que as contas correctas devem incluir não apenas as perdas reais referidas, esmagadoramente maioritárias, mas ainda as chamadas perdas aparentes, que incluem os usos não autorizados, as perdas de água por erros de medição e os consumos não facturados medidos ou não medidos: porque as perdas reais são água não facturada e toda a água não facturada é perda comercial, independentemente da razão. Acresce que uma parte importante do negócio está concessionado, às vezes agregando vários municípios de realidades diferentes, mas a responsabilidade pelo investimento nas redes está nas mãos das câmaras. O seu a seu dono.   

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E quem apresenta os melhores e os piores valores de consumo não facturado? Mudam os primeiros e os últimos lugares do ranking local, com resultados aparentemente até mais preocupantes. Macedo de Cavaleiros, os oito concelhos do noroeste geridos pela Águas do Norte (Celorico, Santo Tirso, Trofa, Amarante, Arouca, Baião, Cinfães, Fafe), Cabeceiras de Basto e Aguiar da Beira passam para a cabeça com 77 e 71% do total enquanto no extremo oposto, com menos de 10%, ficam repetentes como a EPAL (8,5%) que abastece Lisboa, e a Infraquinta, concessão de Loulé para fornecer a água da Quinta do Lago (6), e também a Indaqua, sociedade para Santo Tirso e Trofa (10,7%). Com base nos critérios da ERSAR, cinquenta e seis municípios não conseguem facturar mais de metade da água que entra nos seus sistemas e outros tantos não ficam muito melhor: “perdem” 40 a 50%. Apenas dois conseguem valores inferiores a 10% enquanto nada se sabe sobre 22.

Contudo, não há dúvidas quanto ao que se passa a nível nacional seja qual for o caminho para lá chegar. Os municípios perderam no ano passado 164 milhões de m3 pelos “buracos” das suas redes – a cada dia, são 450 mil metros cúbicos - e forneceram mais 77 milhões de m3 sem cobrar. Estas duas parcelas equivalem a 30% da água que entrou nos sistemas municipais, foi tratada e estava pronta a ser consumida. Desde o pós-crise, os indicadores vão piorando de ano para ano, ligeiramente, mas sempre na ordem dos milhões de metros cúbicos. Perderam-se mais dois milhões entre 2015 e 2016

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Conhecimento para as gestoras

O abastecimento municipal público de água é um retrato que se desfia entre 256 entidades, divididas entre gestão directa das autarquias e concessões, algumas multimunicipais. Tem um ponto de origem, para o presidente da ERSAR, Orlando Borges: falta conhecimento especializado ao nível da gestão das redes municipais. “Uma parte substancial das entidades gestoras não sabe quanto custa a água ou quanto perdem”, diz ao PÚBLICO.

“Não é só fechar a torneira” - sublinha - que resolve o problema da falta de água, acentuado pela seca extrema. “Há situações muito complicadas por falta de investimento nas infra-estruturas”. Mais do que as que levam a água (em alta) até aos municípios, que registam perdas médias de 5%, é dentro dos municípios (rede em baixa) que o problema se agudiza por ser onde se encontra a maior extensão de rede, chegando aos 30% de perdas.

Orlando Borges não esconde a preocupação: “66,6 mil quilómetros de rede (dos mais de 100 mil) têm mais de 10 anos. Os indicadores internacionais aconselham que a cada cinco anos se faça reabilitação, no mínimo a 1% da rede ao ano. Estamos a fazer metade do mínimo que devíamos", na média entre alta e baixa pressão.

Antes das medidas chegarem à torneira, o regulador fala em dois problemas que explicam a falta de investimento. “Há entidades que não cobram água e outras têm preços simbólicos. Grande parte das entidades em baixa não recupera os custos”, acrescenta, com uma interrogação. “Como é que podem recuperar?”

Em 2015, cada habitante pagou em média cerca de um euro por m3 consumido. E muitos pagaram nada. O resultado é que “as entidades gestoras não têm dinheiro”.

Se a água chega ao destino e não é cobrada, traduz-se num “recurso que não tem custo reflectido” e que é normalmente utilizado para fins “quer podiam ser realizados com outra água”. Oitenta milhões de metros cúbicos de água para consumo público vão para lavagens de estradas e regas, por exemplo, os chamados fins não nobres, muita dela dos próprios serviços municipais.

Com a persistência de seca extrema e severa a provocar sérios problemas de abastecimento em vários municípios e a suscitar receios sobre as reservas de água do país, situação em muito atribuída às alterações climáticas, o presidente da ERSAR visa directamente os municípios que controlam as empresas que gerem o sistema. “Esta gestão de escassez devia ser também um tempo para as entidades gestoras reflectirem sobre os seus meios e capacitação técnica, para estarem à altura destes desafios”. Para Orlando Borges, a questão não é “ter ou não ter câmaras” no negócio da água, mas a sua especialização.

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Nem é o número de pessoas a contratar que pode constituir um obstáculo, na sua opinião, atirando exemplos como o da câmara que responde a essa necessidade “com apenas dois trabalhadores qualificados”.

A austeridade, o saneamento financeiro das câmaras e o aperto das contas públicas nos primeiros anos deste Governo não ajudaram as entidades gestoras. O Governo abriu entretanto candidaturas a fundos comunitários que permitem às autarquias acederem até três milhões de euros para criarem as condições, incentivando-as a juntarem sistemas. O problema, até para começar, é a descapitalização financeira e humana a que estas entidades chegaram, quando os preços praticados também despreocupam os consumidores, habituados a preços altamente subsidiados.

“A questão que se deve colocar é quanto custa a cada entidade prestar este serviço”. O novo regulamento tarifário pra 2018, com tarifas já aprovadas, deixa aos municípios a decisão de definir uma tarifa já com base numa série de pressupostos.

A ERSAR considera que as câmaras têm legitimidade para definir os níveis de subsidiação das tarifas desde que não deixem de cobrar pelo serviço de fornecimento de água, mesmo que seja aos seus próprios serviços, e têm de saber quanto custa. No final, a tarifa a decidir até pode ser abaixo da média, mas respeitando o princípio do utilizador-pagador. “Não custa nada às entidades gestoras, é uma decisão política e de organização interna”, conclui.

Com perdas médias de apenas 5% e boa manutenção da rede, as entidades gestoras responsáveis pelo sector em alta (como a Águas de Portugal) são contribuintes líquidos para a qualidade da água que é consumida.

E a reutilização das águas tratadas?

A associação ambientalista Zero não se deixa impressionar pelas medidas que os municípios dizem estar a executar ou a pensar fazê-lo, como resposta à seca, porque “uma boa parte delas já estava prevista no Plano Nacional de Uso Eficiente da Água”, criado em 2005 e revisto em 2012. Nem pelas anunciadas pelo Governo no Verão, anteriormente +previstas “sem ser para a seca”.

Carla Graça, da direcção da Zero, sublinha que a solução “óbvia e que faz sentido em tempo de seca é reduzir a pressão de água para baixar os caudais. Todas as outras desejaríamos que já estivessem implantadas”. Destaca uma delas em atraso: a reutilização de águas residuais tratadas, com vários fins possíveis, como as lavagens de ruas.

Convicta de que o país não está preparado para secas prolongadas e consecutivas, reclama a existência de regulamentação que ajude os consumidores a utilizarem mais água residual tratada. Actualmente, o país reutiliza 1,2% de toda a água residual tratada quando a média europeia é de 2,6% e a meta para 2030 aponta para 6%.

“Falta um regulamento que permita balizar qual deve ser os critérios de qualidade da água residual tratada para uso público. Pode ser para rega, para algumas lavagens, mas com controlo de qualidade”, diz, atribuindo a responsabilidade pela sua elaboração às entidades reguladoras do sector. E não é por falta de tecnologia, já que uma boa parte das ETAR estão preparadas para isso “mas os sistemas continuam fechados porque não há segurança”, enquanto não houver um regulamento.

Um exemplo conhecido de reaproveitamento de águas residuais tratadas no país é a rega dos campos de golfe no Algarve.

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