Dezassete anos de mudança na violência doméstica

Espalharam-se cartazes pelo país todo a lembrar: “Violência doméstica é crime”.

Uma vítima de violação pode ter de prestar depoimento num balcão. Ainda não há salas de atendimento à vítima de crime em todas as esquadras da PSP e em todos os postos da GNR. Apenas em 63%. O Bloco de Esquerda propõe que se faça o que está em falta até ao final de 2018 e o Governo concorda.

Decorria Junho de 2000 quando ouvi falar neste assunto pela primeira vez. Teresa Rosmaninho coordenava o “INOVAR”, um projecto do Ministério da Administração Interna destinado a modernizar as polícias. Não aconteceria de repente. Para que houvesse uma sala daquelas em cada esquadra e em cada posto, seria preciso remodelar velhas instalações e reservar espaço nas novas. Além de salas para vítimas de qualquer crime, o Governo queria criar unidades específicas para vítimas específicas. Era o ano zero dos núcleos de violência doméstica dentro da PSP e da GNR.

Parece que foi noutra vida. A Baixa do Porto era uma desolação. A Teresa partilhava com o Governo Civil e com o Comando Metropolitano da PSP um palacete degradado, que agora é o espaço de coworking District Offices and Lifestyle. Não havia enchentes de turistas, nem esta mania de dar a tudo nomes em inglês. Os maus-tratos a cônjuge ou análogo tinham acabado de se tornar crime público.

Estava tudo por fazer. O país ia no primeiro Plano Nacional Contra a Violência Doméstica. Nem havia estatísticas. Impunha-se sensibilizar e formar polícias. Um ano antes, fora aprovado no Parlamento o quadro geral da rede pública de casas de apoio às mulheres vítimas de violência.
As primeiras estatísticas foram divulgadas em Maio de 2001 pelo então ministro da Administração Interna, Nuno Severiano Teixeira. Ainda me lembro dessa sessão num hotel do Porto. Algum tempo depois, houve um ligeiro acerto de dados. Naquele primeiro ano, PSP e GNR contabilizaram 11162 denúncias. Alguns elementos recusavam-se a “meter a colher entre marido e mulher”. Espalharam-se cartazes pelo país todo a lembrar: “Violência doméstica é crime”.

O número de denúncias crescia de ano para ano (12697 em 2001, 14071 em 2002, 17527 em 2003). E a resposta ia sendo montada sem planeamento, mais pelas vontades do que pelas necessidades ditadas pelo terreno. Os centros de atendimento eram quase um exclusivo do litoral. As casas-abrigo não funcionavam em rede. Nem tinham um regulamento interno que acautelasse a qualidade dos seus serviços. E também aí me ocorre a Teresa, a reclamar, então já na qualidade de dirigente da organização de mulheres Soroptimist International-Porto Invicta, que gere uma casa-abrigo.

Entre 2000 e 2006, PSP e GNR registaram 109.786 ocorrências. No mesmo período, os tribunais de primeira instância condenaram 2252 pessoas por maus tratos do cônjuge ou análogo. Às cadeias, por esse crime que contemplava o grosso da violência doméstica, tinham ido parar 142 indivíduos.

Era evidente que algo não estava a funcionar. Havia que afinar estratégias. O foco, esse, continuava nas vítimas. Nas vítimas-mulheres, diga-se, embora se admitisse que o fenómeno também afectava crianças, homens, idosos.

Nesses primeiros anos, era quase blasfémia falar em homens-vítimas. Não só porque as mulheres protagonizavam a esmagadora maioria das denúncias, também porque o debate público era animado por grupos de defesa dos direitos das mulheres. Os grupos de defesa dos direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgéneros, Intersexuais evitavam o assunto. Temiam um reforço do estigma.

A Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres tornou-se Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género. A expressão violência doméstica passou a figurar no Código Penal. O processo crime assumiu natureza de urgência. Houve um investimento no controlo e na reabilitação de agressores. Os centros de saúde tornaram-se mais vigilantes. A prevenção começou a chegar às escolas, ainda que de forma avulsa. O paradigma, porém, persistiu. 

No início de 2016, o país tinha 39 casas-abrigo para mulheres e crianças e zero para homens. O programa para agressores aplicado pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais era um exclusivo masculino. As mulheres-agressoras não tinham essa possibilidade. “O Estado tem recursos limitados. Os recursos têm de ser alocados ao que é o problema maior e o problema maior é a violência contra as mulheres”, dizia-me Catarina Marcelino, então secretária de Estado da Igualdade.

Já não estamos aí. Abriu a primeira casa-abrigo para homens, no Algarve. E abriram dois centros de atendimento para as comunidades LGBTI, um em Matosinhos e o outro em Lisboa. Houve uma evolução colossal nestes 17 anos. E, no entanto, o debate continua pejado de preconceito.
Nas notícias sobre crimes contra mulheres, é comum haver alguém a comentar, com irritação, e às vezes com má educação, que o que é preciso é falar dos homens. E alguém a dizer que as mulheres inventam. Nas notícias sobre homens vítimas de violência doméstica, é comum haver alguém a comentar, com irritação, e às vezes com má educação, que o que é preciso é falar das mulheres. E que os homens inventam.

Muitas vítimas não se atrevem a falar. Em 2016, a PSP e a GNR registaram 27.291 ocorrências. Haverá pessoas que inventam? Claro. E há mulheres, homens e transgénero que agridem, mulheres, homens e transgénero que são vítimas, casais heterossexuais que se agridem mutuamente, casais homossexuais que se agridem mutuamente. E tudo isso é atentatório dos Direitos Humanos.

Nalguns dias dou por mim a pensar no que diria a Teresa, se não tivesse morrido há seis anos e um mês. O 25 de Novembro, Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, é um deles. As “cinco regras de ouro”, que queria afixar em cada esquadra /posto, continuam actuais: “cada vítima é um caso único, a vítima merece simpatia e respeito, a vítima não deve ser culpabilizada, a vítima deve ser informada, a vítima deve ser encaminhada”.

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