Raquel Tavares e o grande amor por Roberto

Depois de Zambujo a cantar Chico Buarque e de Carminho a cantar Tom Jobim, agora Raquel Tavares canta Roberto Carlos. Hoje nas lojas, o disco dá rosto a uma paixão que já vem de criança.

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ARLINDO CAMACHO

Foi tudo muito rápido e a ideia nem foi dela. Mas podia ter sido. Um dia, Raquel Tavares recebeu um telefonema do seu manager, João Pedro Ruela, a dizer-lhe isto: Recebi aqui um convite, mas não te entusiasmes muito. Há uma hipótese da Sony Brasil, juntamente com um produtor que se chama Max Pierre, de fazer uma homenagem ao Roberto Carlos e sugeriram o teu nome.” Isto foi em Julho deste ano, “no meio de muitos concertos”, e a fadista, meio incrédula, pediu-lhe apenas que ele só voltasse a ligar-lhe quando estivesse garantido, “para não criar imensas expectativas numa coisa que adoraria fazer.” Soube, mais tarde, que o produtor brasileiro Max Pierre nem a conhecia, apesar de Raquel já ter vivido no Brasil e de ter vídeos no Youtube a cantar canções brasileiras; quem sugeriu o seu nome foi Paulo Junqueiro, na Sony Music Brasil, que ao ouvir falar do projecto disse a Max que conhecia uma cantora “lá em Lisboa que era capaz de gostar de fazer isso.”

Max Pierre queria alguém que cantasse em português de Portugal, não necessariamente uma fadista, mas quando se conheceram e quando a ouviu cantar no estúdio, achou que podia ir dar uma volta pois ela daria bem conta do recado. E deu: “Tinha uma semana para gravar 14 temas”, diz Raquel ao Ípsilon. “Mas gravei-os em duas tardes. Dois takes cada. Foi muito fácil para mim assumir a linguagem dessas canções, porque eu tinha muito presente o Roberto Carlos na minha cabeça. O Max pediu que eu respeitasse de alguma forma o atraso do Roberto Carlos no canto, o dengo do Brasil, e assim foi.”

A admiração de Max pela facilidade com que Raquel abordou o universo de Roberto tinha razão de ser. Mas ela depois explicou-lhe. “Estive no Rio três anos, metade do meu coração é carioca, e adoro o Roberto Carlos desde que me lembro de ser gente. Os meus primeiros álbuns foram o Mingos e Os Samurais, do Rui Veloso, e o Roberto Carlos, 1988, disco que eu sei de cor ainda hoje. Toda a vida ouvi Roberto Carlos, sabia as letras de cor, quase todas, conhecia a linguagem, os temas, a estruturas, foi fácil.” O mais trabalhoso, diz, ela, foi manter a coerência do canto em português de Portugal. “O meu hábito de falar o português do Brasil é tão grande que tive de esforçar-me para não misturar as duas coisas e fazer com que aquilo soasse bem.” E o esforço compensou, porque, mantendo-se a estrutura dos temas, é a voz da fadista que ressalta, no tom que lhe conhecemos, dando ali e ali algumas colorações do fado às canções de Roberto.

Antes da gravação, o processo foi este: “Ele mandou-me uma lista de 20 músicas, eu mandei-lhe uma outra também com 20; coincidiam doze. Portanto, estávamos no mesmo comprimento de onda. As outras duas fui eu que pedi muito para gravar: Não se esqueça de mim e Olha.” Em mais de quatrocentas canções de Roberto e Erasmo Carlos, acertar em doze é obra. Mas muitas delas teriam de ficar de parte pelas razões mais diversas: “Havia canções que não tinham a ver com a minha linguagem, como Lady Laura ou Mulher de 40. E também não gravei nada da fase mais rock’n’roll do Roberto, que também adoro, como o Splish splash ou O calhambeque. Porque se era para fazer uma coisa com legitimidade, tinha de ser algo que eu pudesse defender francamente.”

Ficaram, assim, doze canções (maioritariamente de amor), que ela gravou: Você, Como é grande o meu amor por você, Sua estupidez, De tanto amor, À distância, Debaixo dos caracóis dos seus cabelos, Palavras, Fera ferida, Detalhes, Cavalgada, Não se esqueça de mim, Olha, Do fundo do meu coração, que deu título ao disco, e Emoções, a fechar. As bases musicais foram gravadas no Brasil e ela gravou depois a voz em Lisboa, onde foi também acrescentada a guitarra portuguesa de Bernardo Couto. As vozes convidadas de Ana Carolina e Caetano Veloso (este em Debaixo dos caracóis dos seus cabelos, canção que Roberto lhe dedicou quando Caetano estava no exílio em Londres) foram juntas já depois de Raquel cantar e seguem-lhe a métrica, como se estivessem ambos ao lado dela.

Memórias de infância

“Chorei muito, chorei a cada take. Porque consigo associar cada um desses temas a uma fase da minha vida, desde muito miúda até a um passado recente, principalmente com o Rio de Janeiro.” Nascida no Alto do Pina em 11 de Janeiro de 1985, filha de um casal bairrista, a mãe do Bairro Alto e o pai da Mouraria, Raquel começou a cantar fado aos 5 anos. E nessa altura já ouvia Roberto Carlos, dos discos. “Acho que o que me atraía era a maneira de ele cantar. Tenho uma imagem de mim, com a minha mãe a engomar roupa e eu debaixo da tábua de engomar a brincar com uns carrinhos e a ouvir Se o amor se vai do Roberto. Eu tenho memórias, vivas, de ouvir o Roberto Carlos na minha casa.”

Essa paixão, mesmo com o fado, não se desvaneceu. “Mais tarde, aos 16-17 anos, quando voltei ao fado e comecei a apreciar poesia, vi que o Erasmo Carlos é um poeta brilhante. Eles [ele e Roberto, parceiros musicais há décadas] cantam a vida, o amor, o desamor, de uma forma ‘popular’, no melhor sentido da palavra. Simples e bonito, como os poetas do fado tradicionais o fizeram. Acho que foi isso que me cativou.”

E depois, diz Raquel, há a linguagem de Roberto (que todos os anos grava) e o misticismo em torno da sua figura: “Sei o quão difícil é chegar ao Roberto Carlos. É uma figura que está lá longe, há o ‘rei’ e há os outros. De resto, admiro imenso o despreconceito que existe em relação ao Roberto Carlos no Brasil e na América Latina, ao contrário de nós, portugueses, que somos muito preconceituosos com as nossas próprias músicas. No Brasil isso não existe. Cantam-se uns aos outros, convidam-se para cantar, partilham o sertanejo com o samba, a MPB com o forró. Nós temos imensos preconceitos e divertimo-nos muito menos que eles.”

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