O que havia de bom no Casal Ventoso vai ajudar a sarar as feridas do bairro

O bairro maldito de Lisboa foi demolido há quase vinte anos, mas há fantasmas que persistem. Nem só de más memórias se fez o Casal Ventoso - e é isso que os seus moradores não podem esquecer.

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Goreti Rodrigues Rui
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Filipe Santos Rui Gaudêncio

Quando tinha 14 anos, Maria José foi trabalhar para uma fábrica de colheres de alumínio na Damaia. “O dinheiro entregava-o à minha mãe. Havia muita miséria. Morava no Casal Ventoso e ia e vinha a pé todos os dias da Damaia.” Maria dos Anjos veio viver para Lisboa com 12 anos, andou a servir em casas e, aos 19, começou a ir ao Mercado da Ribeira. “Eu ia comprar fruta quando já estava mais barata para depois a vender ali no Casal Ventoso. Tinha clientes boas, as pessoas gostavam da minha maneira de ser.” Beatriz nasceu na mesma casa em que foi feita, nunca conheceu outra até o bairro vir abaixo. “Eu ainda hoje sonho com o Casal Ventoso. Nunca sonhei com esta casa, tudo quanto eu sonho é com coisas do Casal Ventoso, com pessoas que morreram no Casal Ventoso.”

Houve um tempo em que a vida no Casal Ventoso, longe de ser um paraíso, também não era o inferno. Muitas famílias da Beira Alta e da zona Oeste que desaguavam na capital iam parar ali, à encosta da Avenida de Ceuta, próxima das fábricas que garantiam algum emprego. Não era um bairro chique, como Campo de Ourique ali a dois passos, mas não era o que viria a ser, um supermercado de droga tão nefasto que a única solução foi mandá-lo abaixo.

E, no entanto, os suspiros pelo bairro de casas baixas e precárias, que já não existe há quase 20 anos, ainda povoam as conversas de muitos antigos moradores. “O meu avô era sapateiro, a minha avó vendia, andava aí pelas fábricas”, conta Goreti Rodrigues, dirigente do Lisboa Futebol Clube, que ainda passou no bairro metade do tempo que já leva da vida. “Na minha infância apanhei a parte boa do Casal Ventoso. Eu ia para a escola, atravessava a Meia Laranja e era tudo pacífico.”

Os mais novos não sabem disto. Muitos já cresceram naqueles prédios vermelhos, amarelos e verdes da Quinta do Loureiro ou no pátio interior da Quinta do Cabrinha, os bairros criados no vale por necessidade. Para eles, o Casal Ventoso é, quanto muito, o que ficou também impregnado na memória colectiva de Lisboa e do país, um estigma que persiste. “Os miúdos que têm seis, sete anos nem sabem o que era o Casal Ventoso”, comenta Filipe Santos, responsável do Projecto Alkantara, uma associação que trabalha com os moradores da zona desde os primeiros realojamentos, no fim da década de 90. “Agora podem sabê-lo de uma forma positiva.”

Filipe Santos tem fotografias que tirou no Casal Ventoso há uns 40 anos, estão guardadas à espera de uma oportunidade para as exibir. “Mostram as carências daquela comunidade, mas as pessoas estavam enraizadas.” Enraizamento é palavra-chave na iniciativa a que o Projecto Alkantara se lançou este ano, em parceria com sete entidades, e que tem financiamento do programa BIP/ZIP da Câmara Municipal de Lisboa. Na Quinta do Loureiro e na Quinta do Cabrinha não há sentimento de bairro, de comunidade. Um caminho que começou a ser percorrido ainda no velho Casal Ventoso. “Com a fase mais complicada da droga, os moradores passaram a viver cada um para si”, conta Filipe. “Assim que passaram para as casas novas, o bairro foi destruído.” Antigos vizinhos deixaram de se ver, o comércio quase desapareceu. A arquitectura não ajudou, opina Goreti Rodrigues. “O bairro hoje é em prédios. Saímos do autocarro, enfiamo-nos em casa e não vemos ninguém. Antes, no meu caminho para casa, eu via umas 30 ou 40 pessoas. Encontrava éne pessoas.”

A mudança foi brusca, o luto ficou por fazer. Diz Beatriz, uma das entrevistadas pela equipa do Projecto Alkantara numa iniciativa de 2014: “Eu chorava com pena. E tinha um móvel muito bonito, lá em cima, que era da minha mãe que Deus tem (…), muito antigo e todo trabalhado. E eu não o tinha trazido ainda para aqui, e então bateram-me à porta, a dizer que fosse lá acima ao Casal Ventoso, que já tinha uma parede da casa deitada abaixo – e eu ainda lá tinha o móvel cheio de roupa!”

Resgatar a memória desse antigo Casal Ventoso com o que ele tinha de melhor – porque sim, havia coisas boas – é então o truque proposto por Filipe Santos e Patrícia Semeador, assistente social, para colar o que o tempo e as circunstâncias foram descolando. Desde Setembro e até ao próximo ano, a equipa vai entrevistar os mais antigos moradores do bairro para que, no fim, se constitua um Núcleo Interpretativo do Casal Ventoso.

A ideia é mais do que um programa saudosista, é um incentivo à acção. “O respeito pelo edificado acaba por sofrer muito com o afastamento social”, exemplifica Filipe Santos no meio da Quinta do Loureiro, onde o espaço público já viu piores dias – mas continua muito pouco aprazível. Se não sentirem que o bairro é seu, os moradores nunca vão cuidar dele. “Não podem continuar a pensar que a vossa casa começa do tapete para dentro”, costuma dizer Filipe aos habitantes. Esta quarta-feira há um primeiro passo para combater a indiferença: cerca de cem estudantes universitários vão juntar-se aos moradores da Quinta do Loureiro para limpar e pintar áreas comuns dos prédios.

Isto servirá para “demonstrar à sociedade que é possível que estas pessoas dos bairros problemáticos, com uma mãozinha, conseguem chegar onde chegam os outros”. Mas a mensagem não é só para a sociedade, é para os próprios. Nos últimos tempos, de quinze em quinze dias, há reuniões para constituir uma associação formal de moradores. E diz-lhes Filipe: “Vocês todos juntos têm uma força que não vos passa pela cabeça.” 

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