Franco Fagioli, um contratenor fora do comum

Na sua estreia no Grande Auditório Gulbenkian, esta terça-feira às 21h, o contratenor argentino Franco Fagioli dá voz a algumas das mais extraordinárias árias de Handel.

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Franco Fagioli é reconhecido pela sua enorme agilidade técnica, pela beleza da voz e pela paixão Julian Laidig

Um dos mais aclamados contratenores do actual panorama musical, Franco Fagioli é reconhecido pela sua enorme agilidade técnica, pela beleza da voz e pela paixão que coloca nas suas interpretações. Tem-se distinguido sobretudo nos papéis das óperas de Handel, mas também em repertório mais tardio como é o caso de Rossini, um universo pouco abordado pelos cantores da sua tessitura vocal. Com a orquestra barroca Il pomo d’oro, com a qual se apresenta esta terça-feira, às 21h, no Grande Auditório Gulbenkian, tem realizado várias parcerias de sucesso, incluindo o CD Arias for Caffarelli. Depois de se ter apresentado na Casa da Música, em 2013, faz agora a sua estreia em Lisboa num programa inteiramente dedicado a Handel, que antecipa, em parte, o seu próximo CD na Deutsche Grammophon.

A sua actuação na Gulbenkian será inteiramente dedicada a Handel, um compositor central na sua carreira. Que critérios seguiu na escolha das árias?
O concerto de Portugal antecipa o disco que vai sair em Janeiro de 2018, mas não corresponde exactamente ao mesmo programa, ainda que tenha árias comuns. O meu caminho foi diferente do da maioria dos contratenores, pois não comecei a minha carreira apenas centrado na música barroca. Os meus professores, na Argentina, ensinaram-me a partir da técnica e da estética do bel canto italiano do século XIX. Foi depois de vir para a Europa que a minha carreira ficou muito ligada às óperas de Handel pois com o registo de contratenor é uma consequência lógica, uma vez que este compositor dedicou óperas maravilhosas às vozes de castrato. Ainda não tinha gravado um álbum de Handel pelo que decidi escolher as árias que foram mais especiais na minha vida: árias com as quais me identifico a nível emocional e musical, que me “põem pele de galinha”! Tal como um cantor pop sente certas canções como suas, também eu sinto estas árias como minhas.

Quais são as suas personagens handelianas preferidas?
Todas são um desafio artístico, vocal e teatral. É muito importante a personagem, mas também saber quem foi o cantor que na época interpretou o papel. Por exemplo, Xerxes foi escrito por Handel para o castrato Caffarelli, que tinha uma personalidade especial e um extraordinário talento. Enquanto preparava esta ópera, pus-me a pensar: Xerxes canta o maravilhoso Ombra mai fu, que é uma ária tão famosa, etérea, sublime... Mas a personagem de Xerxes não é humanamente simpática, é um rei caprichoso. Não tem nada que ver com o seu irmão Arsamene que é amoroso e sofre verdadeiramente. Saber que Handel escreveu o Ombra mai fu para Xerxes — que invoca nesta ária a sombra de uma árvore de que gosta muito —  e que o cantor era Cafarelli, um dos castrati mais polémicos da época pela sua personalidade de divo, traz outras perspectivas de interpretação. Também para Cafarelli foi escrita a ária Crude furie, cheia de coloraturas, que também cantarei em Lisboa. Caffarelli estava ao nível dos famosíssimos Farinelli, Carestini, Senesino e é mencionado na ópera O Barbeiro de Sevilha de Rossini, quando se diz “Cafarelli cantava così”. Devido às minhas características vocais, cabe-me quase sempre fazer os papéis do “bom da fita”, que ama e sofre sinceramente. Personagens nobres e heróicas como Ariodante, Rinaldo, Giulio Cesare, mas Handel tem também outras com um toque de picardia (como Xerxes e, em parte, Giulio Cesare, que é muito galante, sedutor e cheio de poder). Como intérprete tento identificar-me com todos. É divertido fazer de mau e também fazer de bom!

Como procede em relação às ornamentações nas árias da capo?
As variações e ornamentações são o último que se deve escrever. Nem sempre acontece assim, pois há directores de orquestra que logo no primeiro ensaio querem saber o que vamos fazer. Não é esse o meu modo de trabalhar. A variação, além de ser um estudo musical de recomposição de uma melodia, tem de ser produto do espírito da personagem e o reflexo do que está a passar-se em cena. As variações da ária da capo têm de estar ligadas à acção e ao momento emocional. Fiz o curso de piano, estudei harmonia e composição, conheço as ferramentas para variar uma melodia. Faço este trabalho eu próprio, mas também recebo indicações do maestro. E por vezes improviso no momento. Tem de ser algo que sai de dentro, não algo intelectual, e que sirva para sustentar uma palavra, uma frase, uma intenção musical.

Recentemente fez o papel titular de Eliogabalo, de Cavalli. Como foi esta experiência?
Normalmente sinto-me mais identificado com o repertório do Barroco tardio e posterior, como Mozart e Rossini, mas é sempre uma maravilha poder cantar Monteverdi e Cavalli, compositores que estão mais próximos do nascimento da ópera. O repertório do primeiro barroco faz-nos entender a essência da ópera. Não se trata só de cantar bonito: a ópera é um género musical intimamente baseado na palavra, no texto, na arte de dizer. Mais do que cantores somos actores que cantam e isso é evidente com Monteverdi e Cavalli. É um desafio para mim porque estou mais familiarizado com outra escola de canto (mais ligada ao barroco tardio, ao “canto fiorito”, ao lirismo). Mas este repertório dá-nos muitas ferramentas na hora de cantar um Handel.

A sua formação foi diferente da da maior parte dos contratenores. Que impacto teve no seu perfil como cantor?
Mais do que falar de tipologias vocais é importante falar da escola de canto com a qual nos identificamos. Na época de Handel também existiam contratenores, ou seja falsetistas, mas estes não cantavam na ópera, cantavam música sacra. A ópera era interpretada pelos castrati. Isto dá-nos alguma luz sobre o que significa ser contratenor hoje. Os castrati tinham sido formados em Itália, na escola napolitana de canto. Mas os contratenores poderiam vir de outra tradição como a inglesa ou a alemã. Além disso, havia os cantores russos, os franceses... cada um com a sua escola. Já na época de Handel havia essas diferenças: o castrato cantava de uma maneira, o contratenor de outra. Refiro-me a questões técnicas e de estilo, para além da condição física dos castrati. Hoje não temos castrati (graças a Deus!), mas temos contratenores e dentro desta categoria podemos falar de várias tradições: há os que estão mais próximos da escola italiana; da escola inglesa; da escola alemã... e assim sucessivamente. Essa filiação define uma vocalidade, um som e um repertório. Os meus professores na Argentina ensinaram-me o canto da escola italiana. Primeiro fui aluno de uma soprano e depois de um barítono. Eles nunca tinham tido um aluno contratenor. Como tal cantava canções de Bellini, Donizetti, Rossini, uma ou outra ária barroca. Estou agradecido por esta formação inicial me ter preparado para cantar não só Handel, mas também Mozart ou Rossini.

Pretende continuar a explorar Rossini e os seus contemporâneos?
Sim, absolutamente. Rossini escreveu duas obras muito importantes para o último castrato a cantar nos teatros de ópera: Giovanni Battista Velluti. Compôs para ele a ópera Aureliano in Palmira e a cantata Il vero omaggio. A vocalidade dos castrati não era desconhecida para compositores como Rossini, Mercadante ou Meyerbeer, que também escreveu o famoso Il crociato in Egitto para Velluti. Se eu cantar numa ópera de Rossini não estou a fazer nada de estranho. Só parece estranho porque a maioria das pessoas não sabe isto. Rossini ainda escreveu para castrati e Mozart ainda mais. O famoso motete Exultate Jubilate, os papéis de Sesto em La Clemenza di Tito, de Idamante no Idomeneo, Ramiro em La Finta Giardinera. Hoje as meio-sopranos interpretam esses papéis porque já não existem castrati e também não há assim tantos contratenores que possam cantar nessa tessitura. Sesto, Idamante, Xerxes ou Ariodante são hoje cantados por mulheres, o que está muito bem, mas no meu caso, as minhas características vocais permitem-me também abordá-los. Por outro lado, no século XIX compositores  como Rossini continuaram a escrever óperas sérias e a incluir nos seus papéis de heróis vozes agudas femininas. Isto constitui uma espécie de nostalgia da era dos castrati e explica papéis rossinianos como Tancredi, o Malcolm de La Donna del Lago ou Arsace na Semiramide.

Quais são os cantores (e outros músicos) que mais admira?
Na ópera Pavarotti e mezzos-sopranos (que são as minhas mestres virtuais) como Cecilia Bartoli, Anne Sophie von Otter, Jennifer Larmore, Marilyn Horne ou Elina Garanca. Também me inspiram instrumentistas como a pianista Martha Argerich e a violinista Anne-Sophie Mutter. Mas também admiro muitos cantores da música popular. Adoro Mercedes Sosa, argentina e tucumana como eu, e Carlos Gardel. Está tudo conectado. O folclore argentino tem muito em comum com o primeiro barroco espanhol, levado pelos conquistadores. O tango foi influenciado pelos emigrantes europeus que foram para a Argentina. Num tango podemos escutar um pouco de uma cançoneta italiana, um pouco de Puccini, um pouco de ópera... Na nossa época esquecemo-nos que ópera é uma arte prática, uma arte que nunca está terminada. Colocámos a ópera num pedestal, mas há 200 anos as óperas eram compostas, interpretavam-se três ou quatro vezes e pronto. Depois vinha outra e a seguinte... Hoje todas essas obras de arte adquirem uma elevada importância, o que está muito bem, mas não nos podemos esquecer de como nasceram.

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