Trump e o botão nuclear

O que é novo, e até agora impensável, é o debate americano sobre os procedimentos a que o Presidente se deve sujeitar antes de accionar os códigos.

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1. Parece incrível mas é verdade. Pela primeira vez desde que os Estados Unidos dispõem de um arsenal nuclear, a maturidade de um Presidente para lidar com ele é publicamente posta em causa no Congresso americano. O nome desse Presidente, sabemos qual é. Começou com as considerações do senador democrata Christopher Murphy, que, sem meias-palavras, pôs em causa a capacidade de um Presidente “tão instável, tão volátil, com um processo de decisão tão estranho” para poder ordenar um ataque nuclear, que “está completamente fora dos interesses nacionais de segurança dos EUA”. A Comissão dos Negócios Estrangeiros do Senado está a realizar uma série de audições para apurar se o poder total do Presidente para desencadear um ataque nuclear deve vir a ser limitado. O debate já saltou para a imprensa. Como resume a Foreign Policy, tudo isto “reflecte a crescente ansiedade criada pelo comportamento impulsivo de Trump, e se o Presidente deve continuar a ter essa autoridade (...) sem qualquer verificação ou restrição exterior”. No sistema actual, “ninguém pode vetar a sua decisão”, acrescenta na mesma revista Bruce Blair, investigador em Princeton. William Perry, que foi secretário da Defesa de Clinton, diz ao Politico “que ninguém deve acreditar que James Mattis ou Rex Tillerson o conseguiriam parar”. A proposta de alguns senadores democratas para a revisão do protocolo nuclear junta o chefe do Pentágono e o procurador-geral a uma decisão do Presidente. Os senadores republicanos, com algumas excepções, têm evitado manifestar-se. Mas a preocupação está instalada e tornou-se tema de debate público. Nunca até hoje isso tinha acontecido. Quando Trump ameaça Pyongyang com “o fogo e a fúria que até hoje nunca ninguém viu”, não há forma de não pensar noutra coisa.

 

2. Durante os anos da Guerra Fria e do “equilíbrio do terror” (a capacidade de destruição mútua), houve apenas um momento de pânico, durante a crise dos mísseis de Cuba, em 1963. JFK conseguiu geri-la com enorme inteligência e ponderação, evitando a catástrofe, apesar da pressão bélica dos militares, que o viam, erradamente, como um líder fraco. Nessa altura, a principal preocupação era um falso alarme ou um problema técnico que alterasse uma informação fundamental. Com menos dramatismo, esse risco ainda se manteve até recentemente. Basta lembrar que, durante os mandatos de Bush e de Obama, foram detectados por duas vezes sinais de um míssil balístico com ogiva nuclear em direcção aos EUA. Os dois presidentes foram informados. Em ambos os casos tratou-se de um falso alarme.

 

3. O fim pacífico da Guerra Fria, em 1991, abriu espaço para a redução dos arsenais militares dos EUA e da Rússia, consagrados em sucessivos acordos, mas não acabou com eles. Os anos de optimismo que se seguiram à queda do Muro tiveram um fim abrupto com a queda das Torres Gémeas. A maior preocupação dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança (todos potências nucleares) passou a ser o risco de proliferação nuclear, à medida que outros países começavam a dominar a tecnologia necessária. Foi o caso da Índia ou do Paquistão (cada um justifica o seu arsenal com o do vizinho, embora a Índia seja uma democracia e o regime paquistanês um buraco negro que os EUA tentam controlar), para não falar do arsenal de Israel, que nunca ninguém viu. Nos últimos anos, Obama e os europeus conseguiram levar o Irão a desistir do seu programa nuclear para fins bélicos.

O mesmo não aconteceu com a Coreia do Norte, cujo regime paranóico e hermético realizou recentemente o primeiro ensaio de uma bomba nuclear e que já dispõe de mísseis de longo alcance, capazes de atingir o território americano. Foi esta crise, que se mantém sem fim à vista, que trouxe de novo a público o risco enorme de deixar em mãos totalitárias, como as de Kim Jong-un, uma arma cujo grau de destruição é absolutamente inimaginável para a humanidade. O que é novo, e até agora impensável, é o debate americano sobre os procedimentos a que o Presidente se deve sujeitar antes de accionar os códigos. Por outras palavras, Donald Trump acaba de ultrapassar mais uma linha vermelha numa matéria que é absolutamente impossível de ignorar.

Não é esse, de resto, o único problema que a capacidade nuclear coreana levanta. Se Kim Jong-un for deixado impune, pode desencadear uma corrida aos armamentos na região, sobretudo por países como o Japão ou a Coreia do Sul, que dispõem da tecnologia necessária para fabricarem a arma nuclear. A recente visita de Trump à Ásia não ajudou a dissipar este cenário, deixando os seus aliados sem a certeza absoluta de que serão defendidos pela América, caso a sua segurança esteja em causa. Coloca-se exactamente a mesma questão com a qual Obama teve de lidar no Golfo Pérsico. Se o Irão chegasse a construir uma arma nuclear, a corrida de países como a Arábia Saudita para a adquirir seria inevitável.

 

4. A questão é que estamos a falar de coisas demasiado sérias para dependerem apenas de um Presidente errático e imprevisível, que não encaixa no perfil presidencial da nação que continua a ser a mais poderosa do mundo. O mesmo cuja doutrina se resume a considerar que a força militar colossal dos EUA chega e basta para manter os inimigos quietos. E não é só a força nuclear. A Câmara dos Representantes está pronta para aprovar um orçamento de Defesa que atingirá os 700 mil milhões de dólares, como ele próprio tinha anunciado. O que preocupa muita gente no Congresso, incluindo do lado republicano, é como é possível compatibilizar este número com a radical redução dos impostos para as empresas, que já tem luz verde do Congresso. A cultura republicana ainda é contra o desequilíbrio das contas públicas, incluindo o défice que vai necessariamente disparar, mesmo com todas as poupanças possíveis com o Obamacare (que ainda não foi “repelido”) ou com outras despesas sociais. Trump conta com uma economia em crescimento e com uma taxa de desemprego irrisória.

Este debate sobre o “botão nuclear”, que ninguém previu, é a prova mais assustadora do que pode acontecer com um Presidente americano disposto a não deixar pedra sobre pedra sobre a ordem internacional que os EUA construíram, justamente quando é mais necessário defendê-la, face à emergência de novas potências com visões muito diferentes. A defesa da democracia não tem qualquer cabimento na forma como olha para o mundo. Pelo contrário, a sua preferência pelos “homens fortes” mantém-se intocada. Se pudesse, gostaria de ter um poder semelhante ao de Xi. Confraternizou com o Presidente filipino, Rodrigo Duterte, que se gaba de matar com as suas próprias mãos os traficantes de droga.

 

5. O último secretário da Defesa de Obama, Ash Carter, convidado recente do programa de Christiane Amanpour na CNN, avisava para os efeitos negativos que este debate traz consigo. O primeiro é desgastar o poder de dissuasão nuclear dos EUA, com as dúvidas sobre a capacidade de julgamento do Presidente. O outro é banalizar um debate que não tem nada, mas mesmo nada, de banal. Trump transformou os Estados Unidos de garante da ordem internacional em desestabilizador-mor dessa mesma ordem, com consequências que ainda são difíceis de prever. É isso que torna mais dramático este regresso do “pesadelo nuclear”, mesmo que ninguém queira acreditar, nem por um segundo, que o arsenal nuclear americano venha a ser utilizado. O que nunca se sabe exactamente é o que vai fazer Pyongyang. Fechado no seu mundo de ficção, Kim Jong-un pode um dia enganar-se nos cálculos. Com a prestimosa ajuda de Trump.

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