Ressuscite-se imediatamente o prazer primordial da sanduíche de pão com manteiga — e mais nada

Aquilo que se quer numa sanduíche é que seja deliciosa sem pesar no estômago. É por isso que impera a regra do pão com manteiga. Esta diz que se o pão for muito bom e a manteiga for muito boa então a sanduíche não precisa de mais nada.

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Nelson Garrido

Quando estou mal disposto vou ler The Importance of Being Earnest e é uma questão de minutos antes de Oscar Wilde me devolver à soalheirice.

Uma das coisas que me faz rir é a saga das sanduíches de pepino, seguida da odisseia das sanduíches de pão com manteiga, bread and butter. Ambas desaparecem nada misteriosamente, por força de serem irresistíveis.

É preciso regressar à sanduíche de pão com manteiga para perceber a lógica sanduicheira do afternoon tea. O Outono tardio é uma excelente altura para recuperar este delicioso vício.

A primeira coisa a lembrar é que as sanduíches do lanche não se destinam a encher a mula. Pelo contrário, devem ser suficientemente leves para não estragar o apetite para o jantar.

Aqui, como em todas as discussões britânicas, há uma questão de classe social que ainda não foi convincentemente superada.

A classe ociosa privilegiada que é retratada por Wilde não é, por definição, tão faminta como os dois personagens masculinos. às quatro da tarde já se fez a digestão do almoço mas não se tem propriamente fome. Daí que as sanduíches se queiram fininhas, ligeiras e muito pouco alimentícias.

Isto, claro está, é para contrastar com os pobres trabalhadores que, por causa da extenuante labuta a que não podem ser poupados, requerem uma alimentação fortemente calórica, para que não lhes falte a energia para providenciar constantemente o conforto das classes indolentes.

Aquilo que se quer numa sanduíche é que seja deliciosa sem pesar no estômago. É por isso que impera a regra do pão com manteiga. Esta diz que se o pão for muito bom e a manteiga for muito boa então a sanduíche não precisa de mais nada.

Em Portugal este princípio também se aplica. Ainda hoje, em qualquer pastelaria, a merenda mais barata é o pão com manteiga. Quando eu era criança só excepcionalmente é que se acrescentava queijo ou fiambre.

Experimente-se uma boa carcaça, cozida em forno de lenha, com uma boa manteiga, aplicada exactamente conforme o gosto pessoal, com a mão mais ou menos pesada.

O pão é estaladiço e fofo, a manteiga é grossa e salgadinha: que mais se pode pedir? Outra arte portuguesa é saber calcar a carcaça até ficar no ponto certo de dentição. Quando era criança gostava de me sentar em cima do papo seco, para aumentar-lhe o tamanho, numa espécie de prenúncio da pizza fria.

Para as sanduíches do lanche é esta a condição principal: a bondade do pão e de manteiga. Dito isto, o pão que mais se presta é o nosso formidável pão de forma. O pior é que é difícil de encontrar um bom pão de forma que só contenha farinha, sal, fermento e água.

Infelizmente, a grande maioria que se encontra até em pastelarias decentes é um pão de forma adulterado, cheio de açúcar, óleo vegetal e conservantes. É muito bonito e faz umas torradas grossas que ensopam manteiga mas, para fazer sanduíches fininhas, é um desastre.

É nas padarias que fazem boas carcaças que encontrará um bom pão de forma, de preferência em forma de paralelipípedo. O melhor pão de forma que conheço é vendido no Estoril, na Pastelaria Garrett. Custa à volta de 4 euros mas é enorme, guarda-se bem (fora do frigorífico, num saco de pano) e permite um corte fininho. Se for para fazer torradas, peça que o fatiem na cozinha: é o tamanho ideal, que a própria Garrett serve nas suas salas.

Felizmente há em Portugal uma grande escolha de boas (e baratas) manteigas, a começar pelas várias francesas e a passar pela irlandesa, dinamarquesa e alemã. É raro encontrar uma má manteiga mas as portuguesas são injustamente preteridas, com a excepção das maravilhas açorianas, amarelas-profundas e cremosas.

Uma manteiga consistentemente subtil e saborosa é a Primor, sobretudo a meio sal. Existe desde os anos 1940 e já foi a manteiga mais cobiçada do país. Apesar de eu não saber de onde vem a manteiga (será holandesa ou talvez dinamarquesa?), ela é sempre muito boa, com um gosto delicado que deixa brilhar o pão e, eventualmente, outros ingredientes.

Estes devem acrescentar-se com siso, para não estragar a harmonia do pão com a manteiga: pepino, ovo cozido, fiambre com mostarda, peito de galinha, agrião, salmão cozido (ou fumado) ou rosbife.

Se desaparecer a magia do pão com manteiga tire o recheio e coma-o mais tarde noutro contexto: como sandes, por exemplo, feita para segurar com as duas mãos.

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