Avey Tare a parar o tempo, a fazê-lo correr mais lentamente

O músico dos Animal Collective apresenta o seu novo álbum a solo, Eucalyptus: a natureza e o tempo que ficou perdido na memória. Esta terça-feira, na Igreja de St. George, em Lisboa.

Foto
Avey Tare, nascido David Portner, membro dos Animal Collective: o álbum que editou em Julho apresenta-o dia 21, em Lisboa, na Igreja de St. George

Eucaliptos. A árvore nativa da Austrália é o primeiro tema de conversa. Não, Avey Tare não sabe o que aconteceu por aqui, Portugal, no Verão e no Outono. Avey Tare, nascido David Portner, membro dos Animal Collective, desconhece o nosso debate sobre a plantação sem critério de eucaliptos, mas é deles que fala. Dos passeios embrenhado nas florestas dos arredores de Los Angeles ou mais a sul e a mais a norte na Califórnia. Fala do campismo que fez e do tempo ganho para si. De inspirar profundamente o odor fresco do eucalipto que predominava no cenário das suas caminhadas, de como foi esse ambiente em que mergulhou que lhe ofereceu o título do álbum que editou em Julho e que apresentará dia 21 de Novembro, em Lisboa, na Igreja de St. George, num concerto organizado pela Galeria Zé dos Bois (22h, 15 euros).

Eucalyptus, assim se intitula o seu magnífico álbum a solo, criado com a ajuda preciosa de Josh Dibb, ex Animal Collective e amigo de sempre. Álbum de regresso, álbum de recolhimento, álbum que pede que nos aproximemos serenamente, com tempo, para ver realmente. “Quando faço música, uma coisa que se destaca sempre como grande influência é o ambiente que habito naquele momento e a forma como a minha vida reage a ele”, diz em entrevista telefónica com o Ípsilon. Durante anos, Nova Iorque foi o seu centro. Foi na cidade, para onde se mudara ido da Virginia natal, que nasceram oficialmente os Animal Collective. Foi ali, entre o bulício urbano e o frenesim criativo, que ele e Noah Lennox (Panda Bear), Josh Dibb (Deakin) e Brian Weltz (Geologist) deram início a uma das mais férteis histórias musicais deste primeiro par de décadas do século XXI.

À medida que eram editados álbuns como Sung Tongs, Feels ou Merriweather Post Pavillion, a banda que inventou novas formas por força de uma imaginação transbordante e uma sensibilidade ímpar na forma como conjugava o novo mundo digital, o universo intemporal da folk e da pop e um desejo por transcendência ora festiva e celebratória, ora reflexiva, ora convulsiva, foi crescendo em influência e em relevância, foi-se tornando força criativa seguida atentamente pelo trabalho em estúdio e desejada para os palcos, muitos palcos, todos os palcos, onde quer que se encontrassem. Os Animal Collective expandiram. Musicalmente, fizeram-no álbum após álbum – Painting With (2016), foi o último, sucessor de Centipede Hz (2012) –, enquanto foram também crescendo as exigências colocadas à banda e à sua actividade.

Foto

Eucalyptus é, como escrevemos, um movimento de regresso. É o terceiro álbum em nome próprio de Avey Tare – Pullhair Rubeye, gravado com Kria Brekkan, das múm, chegou em 2007, Down There em 2010 e, quatro anos depois, enquanto Avey Tare’s Slasher Flicks, editou Enter the Slasher House, gravado com Angel Deradoorian (ex Dirty Projectors), cuja voz ouvimos no álbum que apresenta agora em Lisboa, e Jeremy Hyman (ex Ponytail). Começou a nascer em 2014, após a mudança de Portner para a Califórnia. “Abordei o álbum como um verdadeiro trabalho a solo, com uma intimidade de quarto. Sendo músico a tempo inteiro, os meus tempos livres são ocupados, basicamente, no meu espaço privado, que é o meu estúdio, que fica em minha casa. É a minha gruta na escuridão. Passo ali muito tempo sozinho, a ouvir os ruídos da vida nocturna”. Em 2014, refugiou-se nele e, sem se preocupar com a passagem do tempo e com prazos a cumprir, deixou que a música fluísse. Assim nasceram as bases daquilo que ouvimos em Eucalyptus, álbum de voz serena, calmante, álbum em que a guitarra acústica é dedilhada com vagar ou manipulada para crescer em vagas sonoras, bordões encantatórios que acolhem sobre si teclados e sintetizadores, sons manipulados, cordas e contrabaixo, ruídos naturais, o som cortante e cristalino do pedal steel ou percussão de proveniência diversa.

Avey Tare conta-nos que, nos últimos tempos, “principalmente por causa das digressões com os Animal Collective”, sofreu de alguns problemas na garganta e cordas vocais. “Nos últimos dois discos [dos Animal Collective] a minha presença vocal é mais marcada e a grande quantidade de concertos acabou por resultar nisso. Isto [a música de Eucalyptus] foi algo que também usei para me curar, para respirar melhor, para ganhar outra qualidade na forma como canto. Queria que a voz fosse calmante e terapêutica, um momento catártico, apesar de as serem canções serem serenas. Procurava essa qualidade íntima da experiência a solo com o ouvinte, algo em que este pudesse mergulhar e em que se pudesse perder”. Mas Eucalyptus não é resultado de uma terapia para melhorar a qualidade das cordas vocais.

Diminuir a velocidade

O álbum desenvolve-se em dois caminhos paralelos. Por um lado, embrenha-se no ambiente natural e conta das árvores, dos oceanos e dos corais que vislumbramos. Tenta ser um sonicamente com toda essa envolvência, tenta que a música tenha a mesma dinâmica de transformação contínua dos ciclos naturais. Por outro, é habitado por uma nostalgia precisa: aquela que surge quando se começa, por fim, a pesar a passagem do tempo e a reconhecer, lá atrás, algo de muito intenso e muito frágil.

“A natureza é aqui muito proeminente e eu estava rodeado por ela, portanto, sobressaiu como o ambiente mais presente enquanto fazia o álbum. Ao mesmo tempo, achei interessante a ideia de transformação”, explica. “O eucalipto viajou até à Califórnia desde a Austrália e transformou o meio em que veio habitar. A música actua da mesma forma, transforma o ambiente à nossa volta. O título nasce daí”. A mudança para a Califórnia e o reencontro com a paisagem natural – “houve definitivamente uma religação, porque este contexto está mais próximo do meu eu verdadeiro e talvez houvesse uma porção de mim que estivesse perdida na vida da cidade”, confessa –, coincidiu com uma tomada de consciência. Outro movimento de regresso. “A minha música sempre criou esse efeito nostálgico. Sinto que a maioria dos melhores sons têm algo disso, um amor por qualquer coisa que se perdeu. Mas a altura em que comecei a gravar foi a primeira em que olhei para trás e constatei que sou mesmo mais velho e que já andamos a fazer isto há muito há muitos anos”.

Fala no plural porque se refere aos Animal Collective e porque aquilo que ouvimos em Eucalyptus é indissociável desse percurso criado em conjunto. Não será por acaso que ouvimos em canções como Ms. Secret ou In pieces algo da tropicália digital e da folk fantasista do supracitado Sung Tongs, editado em 2004. Gravando em casa, ouvindo o ruído nocturno e deixando a memória viajar para outros anos e outras paisagens, Avey Tare transportava-se para momentos em que “o tempo passava mais lentamente”: “Parte do objectivo de fazer música assim é travar um pouco, diminuir a velocidade, não só para mim, mas para quem está a ouvir. Religarmo-nos com a nossa criança anterior, de certa forma”.

Eucalyptus esteve próximo de não acontecer. Depois de compor as canções que o compõem, David Portner começou a reunir todos que sons que lhes queria acrescentar. “Demorei um ano a criar todos os pedaços de cada uma, as secções corais, a olhar para o todo como uma sucessão movimentos. Foi nisso que pensei, em ciclos e movimentos, um pouco como imagino que seja composta música clássica”. Dada que o álbum lhe fora nascendo como criação solitária, assim o quis manter até estar finalizado. “Mas fui-me sentindo cada vez mais frustrado por não conseguir atingir os resultados que queria. Era muito difícil trabalhar com as máquinas e estar concentrado a tocar, de forma a conseguir caminhar nessa linha ténue entre intuição e intenção que está no coração do meu processo musical”. Durante um período, arquivou o álbum por nascer. Até que, no início de 2016, se encontrou com Josh Dibb. Contou-lhe daquelas canções e da sua frustração. Josh entusiasmou-se. Pouco depois, estava em Los Angeles.

“Transformámos a minha casa num estúdio de gravação, usando quartos diferentes para diferentes sons de guitarra. Gravámos vários instrumentos acústicos e, meses depois, na mesma casa, misturámos tudo”. Se Eucalyptus é o álbum em que Avey Tare olha para trás, em que pesa o que passou e em que procura o lugar que ocupa agora, acaba por ser coincidência feliz que só tenha conseguido dar-lhe forma definitiva quando lhe entra em casa um amigo de sempre, alguém que estivera lá, naquele ontem a que Avey Tare regressava. 

Quem estiver na noite da próxima terça-feira na Igreja de St. George, ouvirá as maravilhas e os deslumbramentos e as nostalgias de Eucalyptus, porém, não se ficará nele. “Nos concertos, tenho tocado cinco canções do álbum. No resto do tempo apresento material novo que segue um caminho mais rítmico”. Este é o fio condutor, mas até estarmos lá, não saberemos exactamente aquilo com que nos depararemos. Avey Tare pretendeu que a música de Eucalyptus reproduzisse a cadência dos ciclos naturais e a constante capacidade de transformação da natureza. Ser imutável não consta, portanto, entre as suas qualidades. “Diria que, por norma, as canções se tornam mais cruas e mais despidas ao vivo, mas, de noite para noite, abrem-se a ganhar vida própria. É assim que sempre funcionou comigo em relação à música”. O tempo de ontem não é o de hoje. A música de Avey Tare está viva. E move-se. 

Sugerir correcção
Comentar