Se estão proibidos os jantares no Panteão Nacional, também estão nos Jerónimos?

Esta e outras perguntas ficam por responder enquanto o Ministério da Cultura trabalha na revisão do despacho que regula o aluguer de espaços em monumentos e museus para iniciativas privadas. No Palácio da Ajuda, este sábado, houve um jantar que rendeu à DGPC 14 mil euros.

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O actual Panteão Nacional foi construído no local que a infanta D. Maria, filha de D. Manuel I, destinara a uma igreja pbc pedro cunha

Um jantar no Panteão Nacional? Três? Dez? Uma prática corrente — e regulada — nos museus e monumentos tutelados pela Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) transformou-se neste fim-de-semana, e de um momento para o outro, num caso nacional depois de o primeiro-ministro ter classificado como “absolutamente indigna” a utilização deste monumento para um jantar inserido na Web Summit e que reuniu, na passada sexta-feira, cerca de 200 CEO, fundadores de empresas e grandes investidores.

O ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, reagindo às declarações de António Costa, esclareceu, numa breve nota enviada à comunicação social, que o dito jantar tinha sido autorizado ao abrigo de um despacho do anterior governo PSD-CDS e que fazia agora tenções de rever as regras de utilização dos monumentos nacionais para eventos privados. Uma nota em que começa por dizer que “estranhou” a realização de tal jantar no panteão, a dessacralizada Igreja de Santa Engrácia, em Lisboa.

Como pode o ministro da Cultura “estranhar” que ali se façam jantares se já se realizaram dez desde 2002, três deles já este ano? E que diferença faz alugar o corpo central do panteão — uma grande praça que parece feita para passear, rodeada de cenotáfios (monumentos fúnebres onde não há restos mortais) — ou os claustros do Mosteiro dos Jerónimos para um jantar privado? Nos dois monumentos homenageiam-se importantes figuras da história e da cultura portuguesas. Nos dois monumentos há restos mortais de chefes de Estado e de escritores.

“O que a mim me parece estranho é que esta questão do aluguer de um monumento nacional para uma iniciativa privada, limitada a uma elite, esteja a ser discutida agora como se fosse uma novidade”, diz Maria de Magalhães Ramalho, a arqueóloga que preside à comissão portuguesa do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS-Portugal). “Jantares destes acontecem por todo o lado no país, nos monumentos e museus que são de todos. Estão tabelados como num catálogo de compras e são o reflexo de políticas que têm olhado para o património com puro interesse comercial. Não é uma questão só deste governo nem só desta direcção-geral.”

No mesmo dia em que a polémica do jantar no Panteão Nacional passava das redes sociais para jornais, rádios e televisões, o Palácio Nacional da Ajuda abria-se a outro evento privado, também com centenas de convidados internacionais — um jantar promovido pela empresa de vinhos italiana Di Meo, que ocupou três das maiores salas da ala nascente do edifício, incluindo a dos Embaixadores, e que rendeu, segundo o seu director, 14 mil euros.

A Ajuda foi escolhida para cenário do evento anual desta empresa italiana, uma celebração que tem também uma vertente cultural, explica José Alberto Ribeiro: “Eles fazem um por ano e nele lançam o calendário que promove o país onde se realiza e a sua cultura. O de 2018 tem os Painéis de S. Vicente na capa e lá dentro imagens da Ajuda, dos Jerónimos, da Igreja da Madre de Deus… No ano passado o país escolhido foi a Áustria e o jantar aconteceu no Kunsthistorisches de Viena, um dos museus mais importantes da Europa.”

José Alberto Ribeiro e Maria de Magalhães Ramalho têm visões bem diferentes sobre os usos a dar ao património, mas numa coisa concordam – é a falta de dinheiro para monumentos e museus que leva a que o Ministério da Cultura e a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) não prescindam das receitas que podem arrecadar com o aluguer de espaços.

Em 2015 e 2016, garante o director da Ajuda, o palácio fez mais de 100 mil euros alugando as suas salas para jantares privados. “Pode dizer-se que não é muito, mas eu discordo. É uma receita significativa para os serviços, mesmo que não possamos mexer-lhe. Não podemos desconsiderá-la.”

É preciso lembrar que, seja a Ajuda, o Panteão Nacional ou o Mosteiro dos Jerónimos, o monumento que ocupa o topo da tabela em termos de custos (alugar os claustros para um jantar custa 40 mil euros), a receita é toda transferida para a DGPC, o que significa que, mesmo que o jantar de sábado tenha rendido 14 mil euros, José Alberto Ribeiro terá de pedir dinheiro à direcção-geral da próxima vez que for preciso trocar lâmpadas nas casas de banho do palácio. “É a eterna falta de autonomia de museus e monumentos, uma situação que tem de ser revista. Não se justifica que não possamos gerir parte do dinheiro que rendem os nossos equipamentos”, sublinha.

Maria de Magalhães Ramalho discorda do peso “significativo” do aluguer de espaços – rendeu em 2016, nos 23 museus, palácios e monumentos tutelados directamente pela DGPC, 420 mil euros, o que representa uns escassos 2,22% de toda a receita – e defende mesmo que a revisão do Despacho 8356/2014, de 24 de Junho, deve impor regras de utilização “muito mais restritivas”.

“O volume da receita não compensa o risco que o património corre nestes eventos privados”, diz. “Não digo que se proíba todo e qualquer aluguer, mas acho que deve regular-se no sentido de excluir os eventos que não tenham um interesse público declarado ou um propósito cultural. E devem excluir-se todos os que não respeitem a dignidade do monumento, o que é para muitos, e infelizmente, um conceito muito diluído.” Para a presidente do ICOMOS-Portugal, que é também funcionária da DGPC, o “panteão não é um sítio apropriado para jantares e muito menos para festas do Harry Potter [em 2003, uma editora foi autorizada a recriar no PN a escola de feitiçaria imaginada por J. K. Rowling para a festa de lançamento de um novo livro da saga do jovem feiticeiro]”.

Se é verdade que o aluguer de espaços não é a galinha dos ovos de ouro da DGPC, também é verdade que os danos ao património são muito raros (os das filmagens de The Man Who Killed Don Quixote, de Terry Gilliam, no Convento de Cristo foram diminutos e uma excepção, embora muitos tenham defendido que o grave em Tomar foi o que podia ter acontecido ao levar 40 botijas de gás para dentro de um monumento património mundial).

“O palácio [da Ajuda] nunca sofreu danos durante os jantares que organizámos”, garante José Alberto Ribeiro.

O PÚBLICO procurou saber junto do gabinete de Luís Filipe Castro Mendes quando estará pronta a revisão do despacho de 2014 e qual será a sua extensão, mas foi informado, apenas, de que se está neste momento a trabalhar nessa alteração. Da DGPC não veio qualquer resposta relativa aos usos gerais do património nem aos do Panteão Nacional em particular, mesmo tendo a directora-geral de autorizar o aluguer dos seus equipamentos.

Sem respostas da DGPC nem da Cultura, não se sabe ainda se a proibição de “quaisquer eventos de natureza festiva no Panteão Nacional [PN]” anunciada pelo ministro se vai estender a outros monumentos públicos que, não sendo panteões oficialmente, o são na prática. É verdade que no PN estão os túmulos dos políticos Manuel de Arriaga e Sidónio Pais, do escritor Almeida Garrett ou da fadista Amália Rodrigues, mas nos Jerónimos estão os restos mortais de Camões, Vasco da Gama, D. Sebastião ou Fernando Pessoa; no Mosteiro da Batalha os de D. João I, D. Filipa de Lencastre, do Infante D. Henrique e D. João II; no de Alcobaça os do casal que protagonizou uma das mais lendárias histórias de amor da Europa medieval, D. Pedro I e D. Inês de Castro...

Colado a Salazar

O actual Panteão Nacional – o templo só passou a ter oficialmente esta função em 1916, já depois da implantação da República – foi construído no local que a infanta D. Maria, filha de D. Manuel I, destinara a uma igreja, concluída em 1568 e destruída em 1681 por uma violenta tempestade. No ano seguinte foi lançada a primeira pedra da actual Igreja de Santa Engrácia, que só seria terminada durante o Estado Novo, em 1966, transformando-se num instrumento de propaganda do regime de António de Oliveira Salazar, o então Presidente do Conselho que não quis perder a oportunidade de ver o seu nome associado ao fim das obras num edifício que esteve quase 300 anos por concluir (a expressão popular “obras de Santa Engrácia” aplica-se, precisamente, a algo que teima em não acabar).

Esta colagem a Salazar, explicou ao PÚBLICO em 2014 Maria João Neto, professora de História de Arte da Faculdade de Letras de Lisboa, fez com que o Portugal do pós-25 de Abril tivesse mantido uma relação difícil com o monumento. Não é por acaso, lembrava a historiadora e comissária científica do livro Obras de Santa Engrácia, que a primeira pessoa que ali é sepultada em democracia, e só em 1990, é um opositor ao Estado Novo – o general Humberto Delgado.

Mas desde que Amália Rodrigues para lá foi trasladada em 2001 (hoje são 12 as figuras ali sepultadas), seguida de dois outros nomes caros à memória nacional, a poetisa Sophia de Mello Breyner (2014) e a estrela do futebol Eusébio da Silva Ferreira (2015), não só os visitantes têm vindo a aumentar (em 2016 teve quase 121 mil), como arriscamos dizer que são já mais os portugueses que sabem onde fica o Panteão Nacional (até então, muitos acreditavam que o Mosteiro dos Jerónimos cumpria essa função).

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