Padre do Funchal que perfilhou criança “devia pôr bispos a discutir o fim do celibato”

Frei Bento Domingues sustenta que Igreja só está “com este problema ridículo às costas porque recusa discutir o fim do celibato eclesiástico”. Bispos portugueses reúnem-se esta semana mas não abrem a boca sobre o assunto.

Foto
“O assunto não está na agenda”. A 193.ª assembleia plenária dos bispos portugueses começa hoje, mas o celibato não será discutido xx direitos reservados

“O voto de celibato dos padres não é dogma nenhum. Quem fez essa norma do direito canónico também a pode – e deve – desfazer. Ao fim e ao cabo, qual é esse tabu do sexo?”. O dominicano frei Bento Domingues, considerado por muitos o maior teólogo português, não duvida de que o sobressalto provocado esta semana pelo padre Giselo Andrade, que assumiu a paternidade de uma criança nascida em Agosto, e que, ao que tudo indica, continuará em funções na sua paróquia no Funchal, deveria ser aproveitado pela Igreja Católica portuguesa para discutir o fim do celibato eclesiástico.

“O reconhecimento da paternidade desta criança é uma questão de direitos humanos, parece-me indiscutível. Quanto ao padre continuar ou não em funções, só pode haver um ‘não’ se houver rejeição dos paroquianos. E os próprios bispos deviam ter o cuidado de mostrar que isso não é problema”, diz frei Bento Domingues. “A Igreja só está com estes problemas ridículos às costas porque se recusa a discutir o problema de fundo: o celibato e as supostas objecções teológicas que levam a que as pessoas casadas não possam ser ordenadas e a que os padres em exercício não se possam casar. Isto é um desastre”.

Numa altura em que “até Lisboa estaria sem padres para todas as dioceses se não fossem as congregações religiosas”, o teólogo crê que a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) deveria “abandonar a sua resistência passiva contínua às orientações do Papa Francisco” – que tem dado sinais de eventual abertura à ordenação de homens casados –, e começar a pressionar o Vaticano para retroceder na questão do celibato. “O Papa não o pode fazer sozinho sem despertar o clamor dessa gente que está a fazer campanhas internacionais contra ele, tem que ser uma coisa a partir das conferências episcopais e dos bispos.

“Continuar a insistir nas mesmas condições para ser ordenado padre é uma demonstração de excessiva confiança no milagre da sua multiplicação”, ironiza Bento Domingues, para quem “se não olhar de frente esta questão, a Igreja consentirá na existência de cada vez mais pessoas baptizadas sem direito à eucaristia”.

Porém, a CEP não parece disposta a abrir qualquer brecha no muro que, sobretudo desde Gregório VII, no século XI, separa o sacerdócio da possibilidade do matrimónio. “O assunto não está na agenda”, escusou-se o porta-voz da CEP, Manuel Barbosa, quando o PÚBLICO lhe perguntou se o caso do Funchal e os problemas que este convoca serão abordados na 193.ª assembleia plenária dos bispos portugueses, que começa esta segunda-feira e discutirá o novo documento orientador para a formação dos sacerdotes e a exortação apostólica pós-sinodal sobre a família.

O PÚBLICO mandou dezenas de emails às diferentes dioceses do país, mas só o bispo das Forças Armadas, D. Manuel Linda, respondeu, lembrando que não haverá na quebra dos votos do celibato “mais falhas do que, por exemplo, na devida e jurada relação matrimonial”. E quando um padre se torna pai, defende,“ao menos que se cumpram os deveres de justiça relativamente às crianças nascidas nesta situação”. “E o dever mínimo”, resume, é "perfilhação, alimentos, afectividade, educação…”.

Quanto à imposição do celibato, D. Manuel Linda diz apenas que “a Igreja continua a apreciar o voto do celibato, desde que assumido com liberdade, alegria e generosidade”.

É pouco. Mas é mais do que se espera ouvir da CEP, cujo silêncio “teimoso”, como o qualifica frei Bento, persiste numa altura em que, lá fora, o problema ganha contornos mais definidos. Em 2014, o Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas deu três anos ao Vaticano para fazer o levantamento do número de crianças nascidas de membros da Igreja e assegurar-se de que estas vêem respeitado o direito a conhecer o pai. A proibição dos acordos de confidencialidade impostos pela Igreja a muitas destas mulheres era outra das condições da ONU. O prazo terminou a 1 de Setembro e o relatório ainda não foi entregue, embora esteja “a ser preparado”, segundo fonte do comité.

Em Maio, a Conferência Episcopal Irlandesa (CEI) decidiu emitir orientações claras quanto ao problema dos filhos dos padres. O documento, que quebra um silêncio de séculos, lembra que um padre, como qualquer outro pai, “deve enfrentar as suas responsabilidades – pessoais, legais, morais e financeiras”. E acrescenta que cabe aos superiores religiosos assegurar que nenhum padre se exime às suas obrigações.

Ao PÚBLICO, Vincent Doyle, o psicoterapeuta irlandês que descobriu aos 28 anos que o seu pai era, afinal, o padre com quem passara largas temporadas na infância, e que fundou depois disso o Coping- Children of Priests International, que deu visibilidade ao problema, considerou, que depois da tomada de posição dos bispos irlandeses, nenhuma conferência episcopal se pode “dar ao luxo de ficar calada”. Quanto ao caso do Funchal, Doyle lembra que a pressão no sentido de que o padre assuma as suas responsabilidades perante o filho não é compaginável com o seu afastamento. “Não se pode dizer com razoabilidade ‘vai, toma conta da tua criança' e ao mesmo tempo ‘estás despedido’ – não só não é justo com a mãe, como põe a criança em desvantagem”, sustenta. Sublinhando que “não haverá muitas oportunidades de emprego para um ex-padre”, pergunta aos bispos: “O que é mais importante: as vossas leis ou que a criança tenha comida na mesa todos os dias?”. 

Sugerir correcção
Comentar