A guerra dos dois príncipes empurrou o Iémen para a catástrofe

Mohamed bin Salman e Mohammed Ben Zayed, príncipes herdeiros da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos, não conseguem ganhar a intervenção militar no país vizinho e estão a provocar uma catástrofe humanitária.

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Bombardeamento em Sanaa na semana passada YAHYA ARHAB/EPA

O preço do gasóleo aumentou 60% de um dia para o outro e o combustível vai acabar até ao fim de Novembro, se o bloqueio total ao Iémen imposto pela Arábia Saudita em retaliação pelo míssil lançado contra Riad há uma semana não for levantado em breve. As vacinas, num país onde 50% das estruturas médicas foram destruídas pela guerra, vão esgotar-se dentro de um mês, avisou o representante da UNICEF naquele país. Se a ajuda humanitária não puder entrar rapidamente no Iémen, “o mundo vai assistir à maior fome em muitas décadas, com milhões de vítimas”, disse Mark Lowcock, o chefe da missão da ONU.

Este bloqueio total – por mar, ar e terra – acontece após dois anos e meio de uma guerra que opõe o país árabe mais pobre a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, entre outros países de uma coligação formada com o propósito de devolver ao poder, em Sanaa, o Presidente Abd-Rabbu Mansour Hadi. Este foi afastado por uma revolta huthi (tribo de confissão zaidita, um ramo do islão xiita), apoiada pelo Irão, com quem a Arábia Saudita disputa a liderança regional. O antigo Presidente Ali Abdullah Saleh, forçado a afastar-se, aliou-se entretanto aos huthis. A Al-Qaeda na Península Arábica e o Daesh entraram também neste conflito, disputando território.

O Iémen é um barril de pólvora, a tratar com pinças. Mas a Arábia Saudita, aliando-se aos Emirados Árabes Unidos, entrou no Iémen como um elefante numa loja de porcelana. Esta intervenção militar é a mais significativa acção internacional que resultou da aliança entre o príncipe herdeiro saudita Mohamed bin Salman e o príncipe herdeiro dos Emirados Árabes Unidos, Mohammed Ben Zayed, país que tem um papel cada vez mais importante na guerra no Iémen. E transformou-se num desastre.

"Esparta" do Golfo

Se o duo dinâmico dos dois príncipes é visto como uma aliança de aceleração das reformas no Médio Oriente, é também um factor de instabilidade. Os Emirados são o quarto maior importador de material militar do mundo – o Presidente francês, Emmanuel Macron, conclui a venda de mais duas corvetas esta semana – e as suas forças, embora sendo reduzidas, têm uma grande eficácia, ao contrário das sauditas, notava em Junho ao jornal Le Monde o analista Benis Bauchard, do Instituto Francês de Relações Internacionais. Por algum motivo os Emirados são conhecidos como a “Esparta” do Golfo Pérsico.

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O príncipe herdeiro dos Emirados Árabes Unidos recebeu o Presidente francês esta semana, para a inauguração do Museu do Louvre no Abu Dhabi Satish Kumar/EPA

Mas essa experiência militar, auxiliada por armamento estrangeiro – muito dele dos EUA, que auxiliam também o esforço de guerra com informações – não garantiu uma vitória à coligação árabe que bombardeia impiedosamente alvos civis e huthis, que negam serem apoiados pelo Irão e apresentam-se como resistentes a uma invasão estrangeira. Nem impediu que a guerra no Iémen se transformasse numa catástrofe humanitária, como atestam os números e os alertas lançados pelas Nações Unidas e pelas organizações humanitárias.

Num país que antes da guerra importava já 90% de tudo o que consumia, os bombardeamentos da coligação árabe têm destruído todas as infra-estruturas do país. A epidemia de cólera, que atingiu enormes dimensões – prevê-se que um milhão de pessoas estejam infectadas até ao final do ano – tem a ver com a incapacidade de reparar os esgotos, danificados pelas bombas durante a estação da chuva, e a incapacidade em garantir que os cidadãos tenham acesso a água potável.

“A intervenção no Iémen tem sido um desastre. Há muito que se tornou claro que falhou. A coligação entre a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos produziu um bloqueio implacável e uma campanha de bombardeamentos sem um horizonte político significativo ou uma teoria de vitória evidente”, escreveu o analista Marc Lynch, do Centro Carnegie para o Médio Oriente.

Após mais de dois anos de guerra e numerosos massacres – o último foi na semana passada, um bombardeamento de um mercado –, contabilizam-se dez mil mortos, 40 mil mortos e milhões de deslocados. Os revoltosos huthis continuam a controlar a capital, Sanaa, impedindo o regresso do Presidente Hadi, que continua na Arábia Saudita.

Nova partição

Mas a posição de Hadi terá mudado: estará agora em prisão domiciliária, tal como o primeiro-ministro libanês, Saad Hariri, que pediu demissão no sábado num discurso pouco convincente, feito a partir de Riad, de onde não regressou a Beirute.

A notícia foi avançada por vários media, incluindo a Associated Press e a Al-Jazira: Hadi, a sua família, ministros e militares estarão a ser impedidos, já há meses, de ir ao Iémen, nomeadamente à cidade de Aden, no Sul, que a coligação diz ter conseguido libertar – embora seja palco de atentados e tiroteios.

Divergências entre os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita sobre o que fazer relativamente ao Iémen estariam por trás desta reviravolta, diz a Al-Jazira. Os sauditas querem pôr fim à aventura e os Emirados defendem uma nova partição do país, em que ficariam a controlar o Sul.

No terreno, milícias com interesses próprios, ligadas aos Emirados, ou que dizem estar relacionadas com Hadi (mas só o estão no nome), perseguem as suas próprias conveniências.

A guerra no Iémen, lançada pelos dois príncipes herdeiros, ganhou uma dinâmica própria, que eles próprios dificilmente controlarão.

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