Nora Ephron, o orgasmo mais famoso do cinema e os três filmes que resgataram a comédia romântica

Infectou a memória colectiva dos anos 1990 com as suas mulheres opinativas e as suas frases mordazes. A autora de Um Amor Inevitável e Sintonia de Amor , que dizia "os escritores são canibais", morreu há cinco anos.

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A maior parte dos seus filmes não é grande coisa. Ou, como simplificou a revista Time no seu obituário, “Nora Ephron não era Ingmar Bergman”. Mas Nora Ephron, que morreu há cinco anos, é autora de outros três filmes que um livro defende agora terem salvo a comédia romântica, esse género que até é Bergmaniano e que é tanto desconsiderado quanto acarinhado pelo público e pela indústria. Um Amor Inevitável, Sintonia de Amor e Você Tem uma Mensagem são aqueles filmes que parecem estar sempre a passar, fragmentos que vivem na televisão ou na memória colectiva. “Os escritores são canibais”, disse, e quando encheu uma parte do mundo de orgasmos fingidos, mulheres opinativas e frases irresistíveis, também libertou nele parte da história da sua vida.

“Nora trabalhava porque era escritora, e escrever não é só uma coisa que uma pessoa faz, mas uma coisa que uma pessoa é”, defende o seu amigo Richard Cohen, colunista do Washington Post e autor do livro She Made me Laugh (2016), sobre Ephron. E ela escreveu, muito. Mesmo nos seis anos da sua doença, a leucemia mielóide aguda que a matou aos 71 anos em Junho de 2012, assinou duas peças, um filme (Julie e Julia, com Meryl Streep e Amy Adams), dois livros e alimentou um blogue no Huffington Post. Foi onde escreveu sobre o seu coração Democrata partido por Bill Clinton mesmo antes do escândalo Monica Lewinsky, sobre as suas receitas preferidas ou sobre a identidade da fonte do escândalo Watergate, que guardou durante décadas, desde o casamento com Carl Bernstein, o jornalista que com Bob Woodward reportou o caso no Washington Post.

A sua vida, a rica fonte de experiências que dos anos 1960 em diante alimentou ensaios, histórias confessionais ou personagens em comédias românticas, está amplamente documentada na primeira pessoa. Não é o caso da sua morte. Manteve a sua doença em segredo mesmo dos amigos mais próximos até ao fim, mas o seu filho mais velho, o jornalista Jacob Bernstein, relataria meses mais tarde na revista do New York Times as suas últimas horas. O seu “último acto”, como intitulou o texto, de uma vida que verteria em filme dois anos mais tarde em Everything is Copy (2016), o documentário feito de entrevistas, filmes caseiros e o retrato do legado de Nora Ephron, dona de um humor mordaz, co-protagonista de três casamentos e autora de três filmes com finais felizes com Meg Ryan.

“Também há todo um livro e um filme dedicado ao seu divórcio do meu pai. (Mas esqueçam isso)”, parece sorrir Jacob Bernstein nas páginas da revista. A infidelidade de Bernstein, o seu segundo marido, ditou uma separação após a gravidez do seu segundo filho, o músico Max Bernstein. E os seis meses de choro tornaram-se no seu primeiro livro, o ácido e humorístico Heartburn (1983), que seria adaptado por Mike Nichols e protagonizado por Meryl Streep e Jack Nicholson em 1986 no cinema.

Comédia na era do feminismo

Mas Nora Ephron, para a maioria, é conhecida como alguém que reflectiu sobre o amor e pôs isso em filmes marcados pelo papel de outros filmes, da fantasia de Hollywood, no romance. Foi “uma revolucionária tradicional”, defendia Andrew O'Hehir na revista online Salon após a morte de Ephron, que “trouxe a comédia romântica para a era do feminismo sem desafiar as suas presunções fundamentais sobre homens e mulheres e o que eles querem”. O seu material era o amor heterossexual e branco, é certo, e o amor nas grandes cidades americanas que vão mudando – no fundo, histórias de Meg Ryan com Tom Hanks ou Billy Crystal em Nova Iorque.

Alimentou essa espécie peculiar que são os filmes facilmente citáveis, cunhados por uma argumentista que só depois se tornou realizadora e que, num revés do destino, não foi a autora da frase que intitula o livro que a homenageia aos cinco anos da sua morte –  I'll Have What She's Having, de Erin Carlson. “Quero o mesmo que ela”, traduzamos assim livremente a fala mais conhecida, acompanhada pelos caracóis loiros de Ryan enquanto mostra como se finge um orgasmo, de Um Amor Inevitável.

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Meg Ryan e Billy Crystal em "Um Amor Inevitável" - talvez o orgasmo mais conhecido do cinema popular

“Quando Um Amor Inevitável surgiu em 1989, numa altura em que Woody Allen tinha passado para uma fase mais séria, tendo criado uma sede geral por comédias românticas inteligentes e metropolitanas que agora já não queria satisfazer, Nora Ephron avançou para satisfazer essa procura”, disse o crítico de cinema do Guardian Peter Bradshaw, no seu epitáfio da argumentista. E, com esse filme, “quase inventou a comédia romântica sentimental e screwball – uma versão light de Woody Allen, mas com um sabor penetrante próprio”. Os três filmes sobre os quais o livro se debruça, e os que a história mais associa a Ephron, “tornaram-se os filmes de relação e encontros-chave dos anos 1990”, acrescentava Bradshaw, embora admitindo que os achou “açucarados”.

Erin Carlson, jornalista, publicou então este Verão I'll Have What She's Having: How Nora Ephron's Three Iconic Films Saved the Romantic Comedy. O livro maravilha-se com a comédia realizada por Rob Reiner e escrita por Ephron, com a solenidade do tributo a O Grande Amor da Minha Vida (1957) com dois potenciais amantes separados por um continente e pela rádio de Sintonia do Amor e com as vénias a Ernst Lubitsch de Você Tem uma Mensagem. E conta as habituais histórias de bastidores (quem poderia ter sido o protagonista, que romances borbulhavam em fundo), recupera o que era o estrelato dos anos 1980 e 90 e pinta uma aguarela de quem foi Nora Ephron e do que os seus três filmes representaram para o meio.

Mas é na revista Interview, numa conversa com o actor Edward Norton em 2000, que a própria Ephron talvez resuma melhor o que considera ter sido o seu grande contributo. “O que Um Amor Inevitável desencadeou de facto foi a ideia da comédia romântica moderna, porque ninguém chamava comédias românticas a Casamento Escandaloso (1940), O Grande Escândalo ou Duas Feras (1938). Chamavam-lhe [comédias] screwball. Só começámos a chamar-lhes comédias românticas depois de Um Amor Inevitável. Mas a comédia romântica pós-Annie Hall, pós-Um Amor Inevitável tem sido uma coisa diferente, no sentido em que o objectivo do filme tem sido o romance, ou a análise desse romance, e a análise dos obstáculos ao romance.”

Na Casa Branca de Kennedy

Nora Ephron foi nomeada para três Óscares de Argumento: em 1984 por Silkwood - Reacção em Cadeia, de Mike Nichols, por Um Amor Inevitável e depois por Sintonia do Amor, que transformou de drama em comédia. Uma de quatro filhas de um casal de argumentistas, Phoebe e Henry Ephron (Parada de Estrelas, 1955, com Marilyn Monroe e Ethel Merman), Nora e suas irmãs tornaram-se escritoras. No Verão de 1961, Nora foi estagiária na Casa Branca de Kennedy – dizia que era provavelmente a única estagiária a quem John F. Kennedy não se tinha atirado. Estudou em Wellesley, trabalhou na sala do correio da revista Newsweek e começou a trabalhar como jornalista para o New York Post, para a New Yorker e para a revista masculina Esquire.

Destacou-se, na sua opinião e na dos seus leitores, quando em 1972 escreveu o ensaio A Few Words About Breasts na Esquire. “Se tivesse tido [mamas], teria sido uma pessoa completamente diferente”, garantia, alta, magra, não particularmente satisfeita com o seu aspecto. Em 2006, escreveria I Feel Bad About my Neck, sobre o envelhecimento – “As nossas caras são mentiras e os nossos pescoços são a verdade. Tem de se cortar uma sequóia para ver quão velha é, mas não o faríamos se tivesse pescoço”.

Rob Reiner apreciava o facto de Ephron ser uma “grande escritora de observação com a maravilhosa capacidade de anotar o comportamento humano”. O actor de Uma Família às Direitas tornado realizador de This is Spinal Tap e Conta Comigo queria fazer um filme sobre o amor e chamou-a. “O destino de Harry e Sally seria um eco do de Alvy Singer e Annie Hall – os últimos frames, amargos e naturalistas – com pinceladas de Ingmar Bergman”, relata Erin Carlson no livro. Harry é um protótipo de Rob Reiner, Sally é a jornalista assertiva que gosta dos seus molhos à parte e tem cuecas com os dias da semana, mas são só seis – não há domingo “por causa de Deus”. Tudo como Ephron. “De certa maneira, esperamos que seja a autobiografia de toda a gente”, disse Ephron.

Michael Keaton ou Tom Hanks recusaram ser Harry e o melhor amigo de Reiner, Billy Crystal, foi convidado para dar ao mundo a sua melhor entoação das palavras “pecan pie”. Já Sally podia ter sido Helen Hunt, Molly Ringwald ou Debra Winger, mas Meg Ryan lá desistiu do seu papel em Magnólias de Aço, deixando-o vago para uma jovem estrela em ascensão chamada Julia Roberts. E foi ela que deu a ideia de que Harry tinha de ser desconcertado com a informação de que as mulheres fingem orgasmos; Crystal cunhou a reacção da cliente que tudo observaria no restaurante, dizendo “I’ll have what she’s having”; Reiner ofereceu a sua mãe, Estelle, para a proferir no ecrã e completar a cena mais conhecida do filme e talvez o orgasmo mais conhecido do cinema popular.

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Ainda casada com Carl Bernstein, o jornalista que com Bob Woodward reportou o escândalo Watergate no "Washington Post". A infidelidade de Bernstein, o seu segundo marido, ditou uma separação após a gravidez do seu segundo filho

“Não há dúvidas de que toda a gente que se queixa de quão pouco Hollywood se preocupa com as personagens femininas está a dizer a verdade”, disse Ephron à autora Lizzie Francke em Script Girls (1994). “Embora tenha tido uma boa experiência com Rob em Um Amor Inevitável, foi um grande choque para ele que o filme fosse tanto de Sally quanto de Harry. Harry tinha mais piadas mas era uma personagem menos complexa. Eu sabia-o quando o escrevi mas ele não e por isso quando Meg começou a trabalhar [no filme] eles ficaram todos espantados pelo facto de ela roubar cenas. Mas aquelas cenas estavam todas no guião, prontas a ser roubadas pela actriz certa.”

O filme estreou-se um mês depois do primeiro Batman de Tim Burton e dois depois de Indiana Jones e a Última Cruzada. Por causa da cena do orgasmo o filme teve classificação R, que limitava o acesso dos menores de 17 anos à companhia de pais ou adultos. Os heróis de Michael Keaton e Harrison Ford, com os seus rostos a derreter e homicídios a tiro, eram para maiores de 13. A cena do orgasmo levaria ainda a outra classificação. “Tão marota”, disse a princesa Diana a Billy Cristal.

Boy meets girl

Naqueles anos 1980, “a comédia romântica era um sítio estranho, cheio de filmes sobre adolescentes suburbanos doentes de amor (o grosso da obra de John Hughes na década, Não Digas Nada de Cameron Crowe), o conto de fadas A Princesa Prometida e dramas dominados por homens”, escreveu Jason Diamond, autor de Searching for John Hughes, no Los Angeles Times. Filmes sobre “se o rapaz fica com a rapariga”, exemplifica a propósito do livro de Carlson. “Havia alguns marginais maravilhosos (vêm à cabeça clássicos como O Feitiço da Lua ou Uma Mulher de Sucesso), mas as coisas estavam a ficar demasiado convencionais”, lamenta. Um Amor Inevitável veio mudar isso, acredita, embora para a crítica do New York Times fosse “a versão sitcom de um filme de Woody Allen”.

Mas, lembra Erin Carlson, nesse ano Ephron recebeu o prémio de argumento nos BAFTA em vez de Steven Soderbergh por Sexo, Mentiras e Vídeo, ou de Tom Schulman por O Clube dos Poetas Mortos, e foi nomeada para o Óscar. Um Amor Inevitável “deu-lhe uma entrada de honra na história do cinema moderno como uma variação literata pouco convencional das convenções da comédia romântica”, recorda hoje a crítica Lisa Schwarzbaum no New York Times. Na altura, Ephron já estava casada com o seu marido Nicholas Pileggi, autor de Tudo Bons Rapazes (1990) e Casino (1995), com quem ficaria até ao fim da sua vida. Continuava a escrever e começava a querer realizar os seus próprios filmes.

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"Sintonia de Amor" ou as dificuldades de encontrar uma alma-gémea à distância

Alguns filmes que poderiam ter sido seus passaram-lhe ao lado, como foi o caso de Os Homens do Presidente, em cujo guião trabalhou com Bernstein nos anos 1970 para o ver preterido, ou de Proposta Indecente (1993), para o qual Adrian Lyne acabaria por preferir um argumentista homem. Mais tarde iria realizar filmes que não deixaram saudade – Michael, ou John Travolta como anjo, Casei com uma Feiticeira, o remake da série televisiva, ou Tarados de Todo, uma aventura natalícia com Steve Martin. Foi do “não” de Lyne que nasceu a possibilidade de rever o guião de Sleepless in Seattle –Sintonia de Amor (1993), baseado numa história de Jeff Arch. “Sei exatamente como fazer isto”, disse ao telefone ao produtor Gary Marshall em Janeiro de 1992. “Vou-te escrever um filme para Meg Ryan e Tom Hanks”. Nova roleta de actores, porque Ryan estava no termo da primeira gravidez, que envolveu Kim Basinger, Madonna e Sharon Stone. Julia Roberts, que já era uma megaestrela após Pretty Woman (1990), disse que não ao papel de Annie, a sonhadora que ouve na rádio o apelo de um miúdo em busca do amor para o pai, mas defendeu que Ephron podia ser a realizadora.

Na altura, Sharon Stone já tinha descruzado as pernas em Instinto Fatal e a comunicação globalizada começava a acelerar. O filme estrear-se-ia no primeiro ano da presidência Clinton. “Vivemos todos num lugar em que ouvimos as mesmas piadas em menos de 24 horas e vemos os mesmos programas de televisão e os mesmos filmes e viramo-nos contra o Presidente no mesmo preciso momento, ou apaixonamo-nos pela primeira-dama”, dizia Ephron, citada em I’ll Have What She’s Having. O filme era também sintomático de outras mudanças. Era um filme de palavras, sem sexo.

Uma republicana que nunca teve um orgasmo

A Annie que Meg Ryan lá aceitaria interpretar "espelhava tempos sexualmente ansiosos”, escreve Carlson. O conservador Rush Limbaugh tinha acabado de baptizar como “feminazi” as  feministas e suas reivindicações e, “entretanto, uma queda constante das taxas de divórcio acompanhou as taxas de casamento também em declínio. O trauma do VIH/sida”, diz Carlson, “aumentou a consciência sobre as práticas de sexo seguro”. Nesse contexto, um filme sobre as dificuldades de encontrar uma alma-gémea à distância, em que um chorava ao ver o clássico O Grande Amor da Minha Vida e o outro vivia preso numa casa-barco de viuvez, foi um sucesso que levaria mesmo um professor de Cinema na Universidade de Londres, Peter William Evans, a considerar que Meg Ryan era a “alternativa-sexo seguro” a outras personagens mais ousadas das comédias românticas da época. Afinal, na descrição de Ephron, Annie era “uma republicana que nunca teve um orgasmo”.

Sintonia de Amor foi um sucesso de bilheteira e “liderou a revitalização de Nova Iorque como a capital do amor da América na imaginação popular”, garante Erin Carlson no seu livro. Foi difícil ter autorização para filmar o final no Empire State Building, mas as receitas do monumento aumentaram logo após a estreia e nunca mais abrandaram; o filme também levou à venda de dois milhões de cassetes VHS de O Grande Amor da Minha Vida (1957). Ephron tinha assinado mais um final feliz em plenos anos 1990, que contrastava com o mais duro realismo dos anos anteriores, de Annie Hall a Uma Mulher Só, passando por Edição Especial.  

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Nicholas Pileggi, autor de "Tudo Bons Rapazes" e "Casino", o terceiro marido e com quem Nora ficaria até ao fim da sua vida reuters

A comédia romântica, e a vida de Ephron, seguiam um novo rumo. Ela, feliz no amor e com oportunidades de trabalho renovadas, a comédia romântica com um fôlego renovado. Numa entrevista com a Rolling Stone, Ephron foi confrontada com a possibilidade de ser mais lembrada pelas suas comédias românticas do que pela escrita incisiva, que continuava a publicar em vários suportes. “Não acho que haja mesmo tal risco.” O seu obituário no New York Times, tantos anos depois, parecia querer concordar com ela. “Ensaísta e humorista do molde de Dorothy Parker (só que mais esperta e mais engraçada, dizem alguns)”, lia-se à cabeça, para só depois se referir que era também argumentista e realizadora. Mas o seu contributo pop era sobretudo esse.

Um ano antes de Sintonia de Amor, Cameron Crowe tinha realizado Vida de Solteiro (1992), comédia romântica passada na Seattle do grunge e do Starbucks, e a sitcom Doido por Ti (1992) chegara à televisão; mas foi depois de Sintonia de Amor que Quatro Casamentos e um Funeral, Jerry Macguire e A Paixão de Shakespeare se tornaram em três comédias românticas nomeadas para Óscar de Melhor Filme – e tiveram resultados de bilheteira a condizer. Em contraste, nos últimos anos, várias vezes a indústria olhou para os números e a imprensa fez as contas para constatar que, desde meados dos anos 2000, as comédias românticas desapareceram da lista de filmes mais vistos e das escolhas dos actores mais cobiçados. “A verdade é que o género da comédia romântica já não parece ter tantos mestres quanto teve em tempos”, disse em Agosto ao Business Insider o analista de bilheteira Jeff Bock. “As Nora Ephrons do mundo desapareceram e o amor e o riso parece ter ido parar às sitcoms e ao streaming.”

Mais sexo, drogas e risco

No final dos anos 1990, a carreira de Meg Ryan não estava tão bem quanto a de Tom Hanks, que fora ganhar um Óscar por Filadélfia (1993) e outro por Forrest Gump (1994). Hanks tinha uma relação próxima com a realizadora, que começara a ajudá-lo com a ideia de escrever textos próprios – o actor editou este ano um livro de contos, Uncommon Type. Recebeu um telefonema da realizadora, que tinha sido contactada por uma produtora que queria fazer um remake de A Loja da Esquina (1940), de Ernst Lubitsch. Ephron trabalharia no guião com a irmã Delia.

“Ninguém quer fazer uma sequela”, recorda Hanks, mas a ideia de Nora Ephron era exactamente mais uma comédia romântica com Ryan. O pano de fundo do amor entre duas pessoas que não se conhecem desta vez era a troca anónima de mensagens via internet (estávamos no dealbar do uso comercial e caseiro da Internet), mas também a gentrificação comercial e imobiliária em Nova Iorque, a pequena livraria independente asfixiada pelas cadeias de megalojas. Para Quentin Tarantino, cita Carlson, “é um dos poucos filmes de Hollywood que lidam com esse assunto de forma séria”.

No que hoje parecem interfaces arcaicos da AOL (que participou no desenvolvimento do filme e até convenceu uma utilizadora real a não usar o nome que a personagem de Meg Ryan iria adoptar online, Shopgirl), desenrolava-se a relação entre vilão adorável e heroína maleável. Nos bastidores trabalhava um assistente de produção, Kevin Feige, hoje o presidente da Marvel Studios e dos maiores fazedores de dinheiro na indústria. Foi ele que ensinou Ryan a usar o e-mail, anos depois de ter faltado às aulas para ver Um Amor Inevitável. Na sala de montagem ficou o papel do Monty Python Michael Palin e Dave Chapelle, um dos mais importantes comediantes dos últimos 30 anos, é um inesperado nova-iorquino de gola alta nas mãos de Ephron. Chapelle reescreveu algumas das suas falas, que incluíam expressões como “raison d’être”, e substituiu-as com referências, por exemplo, aos “bairros sociais”.

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"Você Tem uma Mensagem": Meg Ryan e Tom Hanks no dealbar do uso comercial e caseiro da Internet e da gentrificação comercial e imobiliária em Nova Iorque

Ryan e Hanks reunidos, o espectro de Jimmy Stewart e Margaret Sullavan do filme de Lubitsch a ungi-los, mas Ephron teria de lidar com, por um lado, as críticas ao seu final feliz, “chocantemente conservador”, como escreveu na altura o Guardian, visto que a heroína ficou com o vilão que a levou à falência, e, por outro, com novos tempos. Doidos por Mary, que encheu o cabelo de Cameron Diaz de esperma, foi a comédia daquele Natal e o terceiro filme mais lucrativo do ano. Você Tem uma Mensagem foi o 14.º. “Nora Ephron, eis uma pista. A comédia romântica como a conhecemos sofreu uma mudança radical”, avisava o Los Angeles Times. Os irmãos Farrelly tinham, com Doidos por Mary, anunciado a chegada de uma nova vaga do género, com mais sexo, drogas e risco, aquela que pertenceria anos depois a Judd Apatow ou Paul Feig. Para a sua irmã e co-autora do guião, Delia Ephron, o país abateu-se sobre Nora tal como tinha “passado a gostar um pouco mais de Hillary depois de Bill a ter traído durante a presidência”.

“A minha religião é ‘Get Over It’”, escreveu Nora Ephron na antologia I Remember Nothing (2010) – esquecer, ultrapassar, seguir em frente. O filme continua a ser parte do papel de parede de feriados e repetições televisivas e parte da discussão sempiterna sobre a saúde da comédia romântica. Um género cujo tema "não é só o companheirismo e escolhas de vida, é identidade”, como defende o crítico da New Yorker Richard Brody, e por isso os espectadores guardam-nas perto do coração e os críticos, e a indústria, perguntam-se rotineiramente sobre o seu estado. “Hoje, graças a Amor de Improviso [de Kumail Najuani, em exibição nos cinemas portugueses] e séries de televisão como Mindy Project, a comédia romântica está a viver um momento alto. Mas o caso que Erin Carlson defende é sólido: Nora Ephron reinventou e salvou o género com os três filmes em análise, escreveu Jason Diamond no seu comentário a I’ll Have What She’s Having no LA Times. Actualmente, o género tem rostos, cores, linguagens e temas diferentes, mas Insecure, Crazy Ex-Girlfriend, Master of None, Catastrophe, Jess e os Rapazes ou Looking na TV, e o cinema de Descarrilada ou Um Azar do Caraças mantêm-na viva.

Sanduíches de pepino para o velório

Erin Carlson considera que Ephron é, mesmo com mais filmes falhados do que bem sucedidos, “um ícone” como “os igualmente complexos pioneiros das comédias românticas – Woody Allen, Preston Sturges e Ernst Lubitsch”, tentando elevá-la à custa da comparação com nomes respeitados. Cita também a argumentista Diablo Cody, que postula que o trabalho de Ephron “é uma eterna resposta às perguntas ‘as mulheres têm piada? As mulheres sabem realizar?’. Tudo o que ela fez foi incrivelmente elegante, hilariante e caloroso – basicamente tudo o que qualquer pessoa quer quando está a escrever uma comédia romântica, mas acho que ninguém nunca vai fazê-lo tão bem quanto ela”.

Ephron odiava painéis de debate sobre “mulheres no cinema” ou “mulheres realizadoras” porque lhe parecia limitador. Adorou A Melhor Despedida de Solteira, de Feig, um dos 20 filmes mais rentáveis de 2011. Era um rosto de Nova Iorque, como Woody Allen ou Sarah Jessica Parker. Orquestrava com a mesma intensidade, dizem os filhos e amigos, o cenário de um filme, a roupa de uma personagem ou um jantar de que era anfitriã. A sua amizade de mais de 40 anos com Joan Didion começou com um convite típico de Ephron nos anos 1970: em festas, abordava pessoas que admirava e convidava-as para irem jantar a sua casa. O seu velório foi planeado por si, com local, lista de oradores e ementa detalhados – sanduíches de pepino de uma loja que apreciava, por exemplo.

“Acho que as pessoas pensam que sou muito mais inteligente do que eu sei que sou”, dizia. O documentário do seu filho sobre ela intitula-se Everything is Copy, frase da avó que significava que, naquela família de escribas, tudo era considerado material para uso futuro. Tal como Jacob Bernstein considera que o filme sobre a mãe era na verdade “sobre como a comédia vive no cruzamento entre a coragem e ser impiedoso”, Nora Ephron vivia entre filmes populares e escritos seguidos religiosamente pelos seus leitores. Mas, escreveu o autor e editor Robert Gottlieb na introdução à colectânea The Most of Nora Ephron, “a sua honestidade e capacidade de ser directa, e a sua presciência infalível, tornaram-na uma figura – alguém cuja influência e autoridade transcende os seus feitos individuais, por mais extraordinários que fossem”.

Este artigo encontra-se publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

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