O forno que pariu os fálgaros

Sernancelhe tem fornos secretos e receitas cravadas nas mãos das suas gentes. Tem técnicas engenhosas, chuvas milagrosas e termos aquilinianos.

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Sérgio Azenha

O senhor Luís já tem duas varas de castanheiro descascadas. Aproveitou o forno para dar têmpera, moldar e enrijar os paus, futuros cabos de enxada. “Aquecem e não partem tão facilmente”, diz, enquanto torce firmemente um deles entalando-o num poste de betão. Tira-lhes a casca e ficam perfeitos, lisos e claros — como quando se lançava a bilharda.

Luís não mete a mão na massa. Não directamente. Controla a temperatura do forno comunitário. Enche-o de lenha, arrasta as brasas daqui para ali. Responde às ordens de quem sabe. “Mete mais dois pauzinhos para entreter o fogo.” A senhora Olívia Augusto (como o pai, Augusto) é que sabe. Não sabe muito bem a idade (sabe que nasceu em 1940), mas tem cravada na pele das mãos a receita dos fálgaros, bolo imortalizado também pelas passagens de Aquilino Ribeiro, que aqui nasceu às 13h do dia 13 de Setembro de 1885.

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Nesta receita foram usados 110 ovos (ou até mais) Sérgio Azenha

Hoje, como noutros tempos, este forno é o coração de Tabosa, lugar da freguesia do Carregal, concelho de Sernancelhe. Ao centro da sala, como numa cerimónia, há um alguidar de barro, onde Olívia irá moldar os bolos, que são conventuais sem serem doces. “É uma peça salgada, um bolo que sai caro. Tem a peculiaridade de receber o queijo no seu interior”, adianta Paulo Neto, director da revista literária Aquilino e proprietário da plataforma digital Rua Direita.

“O fálgaro fazia parte do farnel dos dias santificados, dos dias de romaria, dos feriados, dos dias grandes.” Aquilino referiu-se a eles em A Via Sinuosa (“Ângela trouxe mais um charão atestado com fálgaros da Tabosa, cavacas das recolhidas de Freixinho, bolos da Teixeira e um pão-de-ló — doçaria que perpetuava in saecula saeculorum a gulosa memória de três conventos vizinhos”) e Terras do Demo (“Contra o Colégio, armavam as doceiras; bolos, fálgaros, rebuçados em tabuleiros de que choviam rendas e badalhocas; e debaixo do arco que do Colégio dá passagem para a Capela, em lençóis à dependura das paredes, havia ricos ramalhetes de tafetá, amores perfeitos em chita, raminhos com penas de canário, tudo mais catita que um jardim no Maio”). “Terras do Demo não porque algum dia o diabo aqui andasse, mas porque a terra, sáfara, era pobre, tão pobre que Cristo, segundo Aquilino, não gastou aqui sandálias.”

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A massa leva uma sova e é mimada Sérgio Azenha

O engenho e uma ladainha

No alguidar de barro cabe um queijo fresco de vaca feito na véspera (“Tem que ser fresquinho”) e 110 ovos “todos caseiros” que “não podem ser lavados”. “Estes são muito pequenos”, diz Lúcia Correia, que ajuda na lista de tarefas. “Há ovos que contei dois por um.” A receita leva “a parte branca e a amarela” dos ovos, que são partidos à vez uns contra os outros, e dois punhados de sal grosso lançado sobre o queijo, uma ilha branca num mar amarelo vivo. Olívia já mergulhou o braço direito no alguidar e apura o sal com o indicador. Só depois vem a farinha de trigo, “sem fermento, que é mais macia”, e uma espécie de metamorfose entre o braço direito da senhora Olívia, de bata preta, e a massa amarelinha, cada vez mais densa, cada vez mais difícil de trabalhar. “Não é para toda a gente. Os mais novos dizem que não podem dos braços, que têm que se poupar”, diz Olívia, enquanto envolve lentamente nove quilos de farinha como que enredada numa rede, como se o seu corpo estivesse a desaparecer em areias movediças. Empurra a massa primeiro, sova-a e mima-a depois — como a barriga de uma grávida. Vai testando a sua consistência espremendo-a na mão. “Espremi para ver se caía.” Está pronta quando fica suspensa.

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A massa está pronta quando fica suspensa Sérgio Azenha

No forno comunal, a lenha transformou-se em brasas. Já foram deslocadas para uniformizar o calor que invade o cubículo. Já foram afastadas e retiradas com uma pá. Para Luís — e para os fálgaros — o mais importante é a temperatura do forno, entretanto varrido com a ajuda de um garrancho de árvore. “Estes são de giesta, mas caruma de pinheiro também serve.” A vassoura improvisada com uma vara rija de castanheiro descascada e giesta atada com um fio tem uma dupla função. Depois de varrer a cinza, servirá para a senhora Olívia arrefecer o forno. “Está muito quente. Assim queima-os”, diz ao lançar para a goela do forno uma mão de farinha, que tisnou de imediato. Envolve-se a ponta da vassoura com um saco de serapilheira encharcado em água, provocando o arrefecimento.

A massa repousa. Untam-se de óleo as bandejas negras que já foram tampas de latas industriais de azeitonas. Foram testados muitos “tabuleiros” e ficaram-se pelas tampas de lata queimadas no mesmo forno e besuntadas. Cada uma leva três montes disformes de massa pousados como barro numa roda de oleiro. São rapados do alguidar uns 40 projectos de fálgaro (nas feiras e certames são vendidos a 3,50 euros a unidade). Ao engenho, a senhora Olívia, pá comprida na mão como um leme, junta uma lição que soa a ladainha. “Dizem que eles não querem ouvir barulho, que não podíamos andar muito com a pá, nem com a porta do forno. Não querem que sejam muito olhados, não querem que olhem para eles. Bons olhos os vejam.” Começou a chover em Tabosa do Carregal. Não tem chovido nada. As pessoas da terra já tinham saudades. “Ainda bem que chove ou eu não podia fazer o queijo”, suspira a senhora Teresa, vizinha da porta ao lado. “Os animais precisam da água e nós deles”, justifica.

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Os três montinhos de massa são colocados nas tampas de latas esturricadas de azeitonas Sérgio Azenha

Valeroso Milagre

A cozedura dos fálgaros demora uma hora. Dá para ir ao Mosteiro de Nossa Senhora da Assunção de Tabosa e voltar. Fica a “um tiro de zagalote”. As pessoas que actualmente moldam o fálgaro acreditam que terão sido as freiras do último convento cisterciense a inventá-lo. Fundado no ano de 1962, o monumento rodeado por muros altos, considerado imóvel de interesse público pelo Estado português desde 1971, conserva uma muito bem restaurada igreja pública com tectos pintados e uma grade de madeira entrelaçada — trabalho de ourives — que permitia às freiras assistirem à cerimónia de uma forma recatada. Aquilino Ribeiro também está ligado ao mosteiro por ter escrito o conto Valeroso Milagre, publicado em 1921 na revista ABC e no ano seguinte com “Estrada de Santiago”. “Retrata a passagem em fuga da terceira invasão francesa e o medo, o pânico e o temor que se apossou de toda a gente que se refugiou na igreja. O padre, franzino, idoso, meão de estatura, congeminou uma estratégia para afugentar as tropas francesas que, em debandada, pilhavam tudo. Enquanto estavam em oração, mandou recolher todos os santos, arcabuzes e gadanhos e encheu todas as janelas da fachada pondo-lhes atrás uma vela. Ao longe, de noite, as tropas viram aquilo e pensaram ser uma fortaleza muito bem resguardada e não se aproximaram. O povo salvo vai encontrar o padre, extenuado, caído aos pés do altar de nNssa Senhora da Assunção, morto. Isto foi escrito por Aquilino, um agnóstico”, conta Paulo Neto.

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"Não querem que olhem para eles. Bons olhos os vejam.” Sérgio Azenha

Corremos de volta. O forno está prestes a parir. “A certa altura, ouvimos os populares chamarem ao forno onde coziam os fálgaros ‘prenheiro’, como se de uma barriga grávida se tratasse”, lê-se na página 234 do primeiro volume de A Doçaria Portuguesa, livro de Cristina Castro, que abriu uma excepção no seu roteiro guloso para um doce que não é doce, um bolo que não é um bolo. “O forno enquanto prenheiro, para usar o termo de Sernancelhe, está dentro da mesma lógica da natalidade: confeccionar bolos ou pão no forno é uma ideia permutável com a de gerar uma vida no ventre.”

“Eles crescem”, diz a senhora Olívia à medida que vai tirando as tampas pretas e examinando os primeiros trios, batendo-lhes na base com os nós dos dedos como quem bate à porta. “Os bolos crescem e, quais cogumelos, tomam formas pouco vistas”, descreveu na sua visita Cristina Castro. Parecem tubérculos, a erosão de uma escarpa que persiste no tempo. Já há fálgaros rasgados à mão — outros divididos à faca. Há queijo fresco de cabra e um Aquilinus rosé. No forno ainda repousam muitos fálgaros. “Cuidado com as línguas.”

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"Cuidado com as línguas" Luís Octávio Costa
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