Cientistas criaram uma nova pele que salvou criança com doença genética incurável

Equipa usou células estaminais transgénicas para reparar uma mutação associada a uma grave e rara doença que causa dolorosas bolhas na pele. Fez assim uma nova pele para uma criança com sete anos e conseguiu cobrir praticamente todo o seu corpo.

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Colónias de células (holoclones) geradas na epiderme Centro de Medicina Regenerativa da Universidade de Modena

Em Junho de 2015, uma criança de sete anos com uma grave doença genética de pele deu entrada na unidade de queimados de um hospital pediátrico em Bochum, na região do Vale do Ruhr, na Alemanha. Chegou a um ponto em que, numa situação agravada por infecções nas bolhas e feridas que lhe cobriam a pele, já tinha perdido 80% da epiderme que cobre o corpo. O prognóstico era o pior possível. Com o consentimento dos pais, a criança foi incluída num ensaio clínico. Os cientistas propuseram usar células estaminais transgénicas, sem a mutação genética que causa a doença, para fazer uma nova pele que lhe cobriria praticamente o corpo todo. Conseguiram.

Após três cirurgias, 21 meses de tratamento e acompanhamento, uma equipa de investigadores, médicos e cirurgiões conta, num artigo publicado esta quinta-feira na revista Nature, como salvou a vida a uma criança. Hoje, “o miúdo” – assim lhe chamam os investigadores que cuidaram dele – já regressou à escola e as novas lesões na pele são apenas os normais arranhões de uma criança que joga futebol.

A doença chama-se epidermólise bolhosa juncional (EBJ), não tem cura e, segundo as estatísticas, mais de 40% das pessoas que sofrem deste problema morrem antes da adolescência. Há quem lhes chame “crianças-borboleta”, comparando a fragilidade da sua pele com a das asas de uma borboleta. A verdade é que se trata de uma doença que pode ser extremamente incapacitante com o aparecimento de lesões na pele semelhantes a bolhas de queimaduras, que facilmente podem infectar, e que está fortemente ligada ao desenvolvimento de cancro de pele. As lesões surgem com o mínimo traumatismo, por vezes apenas com o “esforço mecânico” de caminhar.

Existem diferentes tipos de epidermólise bolhosa e a severidade dos sintomas varia. Há crianças que têm pequenas zonas afectadas e outras com lesões em quase todo o corpo e mesmo em órgãos internos. Estima-se que existam em todo o mundo 500 mil pessoas com esta doença, nas suas diferentes variantes. A criança que foi tratada pela equipa de cientistas liderada por Michele De Luca, do Centro de Medicina Regenerativa da Universidade de Modena, em Itália, tem a forma juncional desta doença, com uma mutação específica no gene LAMB3 e que difere das outras formas (a simples e a distrófica). Quando foi admitido no hospital já tinha perdido 60% da epiderme, a camada superficial da pele que nos cobre o corpo. Passado pouco tempo, a situação agravou-se mais ainda por causa de duas infecções.

Segundo os médicos do hospital que recebeu a criança em Junho de 2015, que também são autores do artigo e que participaram na conferência de imprensa organizada pela Nature sobre este artigo, o estado deste doente era crítico. “Houve um momento em que sentimos que já nada havia a fazer”, admitiram Tobias Hirsch e Tobias Rothoeft, do Departamento de Cirurgia Plástica no Centro de Queimados e do Departamento de Cuidados Intensivos Pediátricos, respectivamente. “Contactámos vários especialistas em vários locais para tentar algum tipo de tratamento experimental. Tentámos transplantar a pele do pai, que foi rejeitada, e passados dois meses estávamos convencidos de que ele iria morrer e estávamos a considerar apenas os cuidados paliativos. Os pais pediram-nos para fazer tudo o que fosse possível e foi aí que abordámos a equipa de Michele De Luca e tentámos ver se era possível criar pele suficiente para curar esta criança”, especificou Tobias Hirsch.

A equipa liderada pelo investigador da Universidade de Modena que investiga esta área há já vários anos conseguiu uma autorização para uso compassivo de uma terapia genética experimental que está actualmente na fase II de um ensaio clínico. O objectivo era usar células da pele geneticamente modificadas para fazer enxertos que depois seriam aplicadas no corpo da criança. A “nova pele” foi criada na Universidade de Modena.

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O investigador Michele De Luca Francesca-La-Mantia

Realizaram-se três cirurgias para “substituir” cerca de 80% da epiderme da criança. Salvaram “o miúdo”, como lhe chama Michele De Luca. “Ele estava em perigo de vida, o prognóstico era muito mau, sobreviveu e teve alta do hospital em Fevereiro de 2016. Voltou para uma vida normal, na escola e a praticar desporto, depois disto. Agora, após dois anos de acompanhamento, todos os parâmetros clínicos, biológicos e moleculares estão bem. A sua epiderme está estável, robusta, sem quaisquer bolhas”, resumiu o cientista. “Pela primeira vez, fora do sistema hematopoiético [do sangue], foi possível demonstrar que as células estaminais transgénicas podem ser usadas para regenerar um tecido sólido.”

“As duas primeiras cirurgias foram as maiores, a primeira em Outubro de 2015 para os membros e a segunda em Novembro para o tronco e sobretudo a zona das costas. A terceira foi mais simples, apenas para cobrir as pequenas regiões que ficaram a descoberto”, explicou Michele De Luca na conferência de imprensa.

O primeiro passo deste processo foi uma biópsia que permitiu a recolha de cerca de quatro centímetros quadrados de pele do próprio doente removida da zona inguinal, que tinha escapado às lesões. Destas células da pele, os cientistas fizeram culturas de queratinócitos, células que formam as cinco camadas da epiderme, que foram geneticamente modificados com um vírus que introduziu uma versão “normal” do gene LAMB3 que, quando tem uma mutação, causa a EBJ.

Vários enxertos de epiderme transgénica foram aplicados na superfície do corpo que tinha sido previamente preparada para receber esta nova pele. Durante alguns dias, a imobilização do doente permitiu a adesão do tecido à derme e, em poucas semanas, era possível perceber que a situação estava estabilizada, explicou Michele De Luca. O procedimento usado é muito semelhante ao que é feito nos enxertos para doentes com queimaduras graves mas, tal como sublinhou o investigador, neste caso talvez existissem menos riscos de complicações, uma vez que no caso da EBJ a derme não está danificada como muitas vezes acontece em doentes queimados. Assim, a epiderme aderiu de forma firme à derme, as bolhas não voltaram a aparecer e mesmo quando se forçaram situações de “stress mecânico” não havia lesões a registar.

Além da regeneração da pele conseguida com células estaminais transgénicas, os cientistas fizeram outra descoberta importante para a biologia celular e para futuras experiências deste tipo. O acompanhamento da evolução deste caso permitiu que fosse feita uma rigorosa análise das populações das células neste tecido transgénico. Foi possível fazer um rastreio das colónias de células no tecido transgénico. E assim percebeu-se que a epiderme humana é essencialmente sustentada por um número limitado de células de vida longa, proliferativas e que contêm células estaminais (os holoclones), que são capazes de se auto-renovar e que podem produzir progenitores que reabastecem as outras células diferenciadas desta camada superficial da pele.

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Epiderme transgénica criada no laboratório do investigador Michele De Luca Centro de Medicina Regenerativa da Universidade de Modena

Apesar de o enxerto incluir outro tipos de colónias de células (paraclones e meroclones), passado quatro meses estas colónias já não estavam presentes e no final de oito meses apenas os holoclones se mantinham na epiderme. Isto quer dizer, traduz Michele De Luca, que as experiências de medicina regenerativa neste campo devem assegurar que esta população de células de vida longa está presente e é mantida nas culturas de células.

O entusiasmo com os resultados era óbvio durante a conferência de imprensa. “A pele da criança está bastante bem. Não precisa de nenhum cuidado especial. Se fizer algum tipo de ferida, vão curar-se normalmente como em qualquer outra criança saudável desta idade. Ainda tem algumas lesões, em cerca de 2% do corpo, que não tiveram transplantes mas não desenvolveu novas lesões”, disse Tobias Rothoeft, adiantando que joga futebol e se comporta actualmente como qualquer criança saudável da sua idade.

No entanto, e apesar de acreditar que a epiderme daquela criança vai manter-se saudável, Michele De Luca fez questão de travar as expectativas. Entre outras questões em aberto, adiantou, por exemplo, que não se sabe ainda se a técnica usada com esta criança resultará nas outras formas de epidermólise bolhosa. “Quando falamos nas outras formas desta doença, estamos a falar num outro gene, numa outra proteína, numa outra localização. Ou seja, podem surgir problemas que não estamos à espera”, avisou.

Ainda assim, sem avançar muitos pormenores, referiu que estão já em curso outros ensaios clínicos que contam com a colaboração de especialistas do Departamento de Dermatologia do Hospital Universitário de Salzburgo, na Áustria (que também são autores do trabalho na Nature), e que são sobre a forma juncional desta doença e também sobre a forma distrófica. É preciso esperar por resultados dos ensaios clínicos e de outras experiências para conseguir muitas das respostas que faltam, sublinhou.

A impressionante regeneração conseguida neste projecto especial não pode ainda ser considerada uma cura para esta doença rara, mas é sem dúvida uma experiência de sucesso de um tratamento e ensaio clínico com células estaminais transgénicas. Aliás, esta é a confirmação a uma maior escala dos bons resultados que já tinham sido conseguidos antes com um tratamento idêntico. Michele De Luca recorda um artigo publicado na Nature em 2006 e que nas experiências anteriores o procedimento foi usado apenas em pequenas zonas afectadas, mais especificamente nas pernas, em dois doentes com EBJ. Também aqui foi usado um enxerto células da epiderme transgénicas (com a mutação corrigida) que reparou as lesões da doença. Os resultados mantêm-se até agora, sublinhou.

Sobre a hipótese de repetir este procedimento, Michele De Luca salientou os contornos especiais deste caso em que foi necessária uma autorização especial num cenário de vida ou morte. Disse ainda que esta doença se manifesta de formas diferentes e que isso pode influenciar os resultados. Por exemplo, disse, esta criança não tinha sinais de lesões em órgãos internos. “Teve sorte nesse sentido”, comentou. Nesse e em todos os sentidos. 

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