“Agora é mais fácil começar uma revolução, mas mais difícil acabá-la”

A tecnologia foi um comprimido contra muitos males, mas hoje em dia pode ser o pior dos males. Jared Cohen, do Google, desassossegou a plateia da Web Summit com os dilemas da cibersegurança

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Uma das formas de categorizar a evolução histórica das sociedades é dividir o tempo cronológico em períodos de paz e de guerra. Mas as fronteiras entre estes dois conceitos estão hoje mais diluídas do que nunca. Na Europa, não se ouvem armas. Não há Estados em guerra no mundo físico. O que não significa que se viva um período de paz.

A tese é de Jared Cohen e, à primeira vista parece de La Palisse. Porém, há sérias razões para nos preocuparmos e tentar ir mais longe neste debate cuja pedra de toque é a tecnologia. Cohen lidera o Google Jigsaw (uma incubadora de projectos de cibersegurança dentro da empresa criadora do maior motor de busca online e uma das grandes empresas da actualidade) e foi uma das estrelas nas primeiras horas da Web Summit 2017, que arrancou a sério nesta terça-feira, em Lisboa.

Convidado para o palco principal, e perante uma plateia com muitas clareiras e ainda a entrar no ritmo avassalador desta feira, Jared Cohen não perdeu tempo a explicar o que o move. “Venho falar-vos daquilo que eu considero ser a grande questão tecnológica e geopolítica deste momento: como podemos prevenir uma ciberguerra?”

Quem esperava uma check list com medidas, teve de tirar o cavalo da chuva, porque num mundo em que “há mais aparelhos inteligentes do que humanos”, uma resposta definitiva é impossível. Porém, “se compreendermos como chegámos a este ponto”, talvez se encontrem bases para eventuais respostas, sublinhou. 

“A história dos últimos dez ou 15 anos poderia ser resumida num capítulo intitulado ‘o advento da tecnologia’. Passámos por uma revolução no acesso a essa tecnologia, um período durante o qual milhões de pessoas passaram a ter acesso a informação, a outras pessoas próximas ou distantes, a recursos”, prosseguiu, apontando que esse capítulo está em vias de fechar-se. 

“Dentro de três anos, haverá mais equipamentos inteligentes em cirulação do que humanos vivos no planeta. Não era óbvio que a tecnologia se tornasse tão omnipresente, fluída, ubíqua, servida por uma infra-estrutura tal que nos permite estar ligados ao mundo na fronteira do Afeganistão com a mesma qualidade ou melhor do que numa cozinha de Manhattan”, salientou. Só que o que vem a seguir já não serão apenas as “histórias extraordinárias de como a tecnologia mudou para sempre a vida de milhões de pessoas”. Elas continuam a existir, mas misturam-se cada vez mais com histórias em que tecnologias como a Internet passaram a ser utilizadas para destruir. 

Um dos exemplos dados por Cohen: o grupo terrorista Daesh recruta militantes online, faz passar a sua propaganda pelas redes sociais, exibe as suas “conquistas” no YouTube. “Onde antes havia um sinal [entendível] passou a haver demasiado ruído”, frisou. Lição a retirar? “Apesar de termos cada vez mais vozes, cada vez mais opiniões, os governos têm cada vez mais dificuldade em perceber o sentimento das populações”, disse, destacando que este novo capítulo que já se abriu é dominado por dois tipos de atitude: uma cidadania cada vez mais indiferente ao que se passa, por um lado; a exaltação extrema, por outro. 

Tal como as pessoas, que hoje têm mais do que uma conta de email ou telefone, “no fundo têm mais do que uma identidade”, também os governos parecem seguir o mesmo caminho. “Têm uma política para o mundo físico, outra para o resto e nem sempre são coincidentes”, afirmou, entrando de imediato nos desafios que a era das redes sociais gerou para a política e os políticos. “No mundo físico, a Rússia era até há poucos anos uma potência decadente”, apontou. Pelo contrário, no mundo virtual, assume um poder imenso, capaz até de interferir nas eleições democráticas de outro país, de outra potência mundial, como os EUA.

“Graças à tecnologia, criámos um mundo multidimensional, multipolar, um mundo em que o conceito de poder de Estado está a mudar e a transferir-se do plano puramente físico para o plano virtual”, salientou, antes de largar uma das frases marcantes da sua intervenção: daqui para a frente, “todas as guerras vão começar como ciberguerras”.

Nesse mundo, que será este em que já vivemos, já não é o poder financeiro e poder militar que definem quem é ou não potência, prosseguiu, acrescentando exemplos de como as realidades física e digital andam dissociadas. “No mundo real, EUA e China são uma espécie de frenemies. Porém, no mundo digital, a relação entre estas duas potências são muito conflituosas, quase comparável ou mesmo pior do que a tensão entre EUA e Coreia do Norte.”

Neste cenário, o poder parece ter caído nas mãos das redes sociais – e de quem as controla. Mas isso pode não passar de uma ilusão que esconde problemas mais graves, declarou. Por exemplo? “Hoje é mais fácil começar uma revolução, mas mais difícil terminá-la.”

No tempo da guerra fria, o mundo vivia numa “garantia mútua de destruição”, o que de certa forma sempre evitou males maiores porque os governos sabiam que acções destruidoras gerariam uma resposta igualmente destruidora. O problema, assinalou, é que “no mundo actual isso já não existe”. Se não há regras, se não é possível pôr todos de acordo, o que resta? Para Jared Cohen, “não há uma resposta”. Os governos podem e devem medir o “nível de toxicidade” do debate público, reforçar as infra-estruturas tecnológicas, aumentar a cibersegurança.

As notícias falsas (“fake news”) são neste sentido apenas uma táctica para quem detém cada vez mais poder sem escrutínio. São “o equivalente digital da propaganda”, com efeitos mais insidiosos, destacou. A par disto, recorre-se cada vez mais ao “patriotic trolling” (definido por Cohen como “o ciberbullying muito bem organizado”), que é outra táctica e, para terminar o diagnóstico, o recurso aos “paramilitares digitais” – o universo de perfis falsos, com nome e foto, que servem apenas para detectar as conversas que importa calar, virar ao contrário ou promover em nome da causa que defendem. O problema, anotou, é que no contexto actual “já não há regras”. “E se não há regras, como travar a escalada?” 

A resposta de Cohen à sua própria pergunta pode ser desanimadora, porque o caminho não é claro. Uma coisa parece-lhe certa: “Neste mundo híbrido, é injusto pedir aos governos que resolvam todos estes desafios.”

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