A Bélgica dá novo fôlego ao independentismo na Catalunha

Que impacto vai ter o processo judicial ligado à execução do mandado europeu de detenção emitido contra Carles Puigdemont e os seus colegas da Generalitat, nas eleições de 21 de Dezembro na Catalunha? Esta é a questão política central das próximas semanas.

1. A ida para a Bélgica de Carles Puigdemont e de alguns dos seus colegas da Generalitat não foi um acaso. Pode, desde logo, explicar-se pela centralidade na União Europeia. Bruxelas é a sede principal das suas instituições e o seu centro de decisão política, o que lhe dá uma automática visibilidade na opinião pública europeia. Para além disso, Carles Puigdemont sabe que está em terreno amistoso, apesar do incómodo político que causa ao governo belga e do potencial de conflito diplomático com a Espanha. Partes importantes da opinião pública belga, incluindo da sua classe política, têm uma simpatia aberta pela causa da Catalunha. Uma das discussões políticas internas que o caso gerou na Bélgica é se Carles Puigdemont não terá ido para o país na sequência de uma acção previamente combinada com o partido nacionalista flamengo — a Nova Aliança Flamenga (Nieuw-Vlaamse Alliantie, N-VA). Tal como o partido de Puigdemont é de centro-direita. De forma similar, também defende a secessão da Flandres da Bélgica ficando como Estado independente na União Europeia.

2. Na Flandres, tal como na Catalunha, a história é uma arma ao serviço da política e de legitimação da causa independentista. No caso dos nacionalistas da Flandres, é o passado do século XVI, quando os Países Baixos pertenciam à coroa espanhola no tempo da monarquia dos Habsburgos, que interage com o presente. Recentemente, Bart de Weber, Presidente da Câmara (burgomestre) de Antuérpia, invocou acontecimentos trágicos ocorridos entre 4 e 7 de Novembro de 1576 conhecidos como a “fúria espanhola” — a morte de vários milhares de pessoas e saque de Antuérpia por soldados dos exércitos de Filipe II de Espanha. O ressentimento histórico de catalães e flamengos contra Espanha alimenta afinidades e é usado para dar legitimidade a alianças do presente. Mas a simpatia pela Catalunha não existe apenas na Flandres. Ocorre, também, em políticos da Valónia, como Elio di Rupo, antigo Primeiro-Ministro e membro do Partido Socialista. Este criticou duramente a atitude do Primeiro-Ministro espanhol, Mariano Rajoy, como denotando traços de um “franquismo autoritário” face à Catalunha.

3. Neste quadro político, o cruzamento dos processos judiciais que envolvem Carles Puigdemont e os outros membros da Generalitat que se encontram na Bélgica, com as eleições na Catalunha marcadas para o próximo dia 21 de Dezembro, vai ser da maior importância para o futuro da questão política. O tempo judicial e o tempo político interligam-se aqui de uma maneira particularmente delicada. Recordemos os principais factos. A 3 de Novembro foi emitido em Espanha um mandado de detenção europeu contra Carles Puigdemont e outros membros da Generalitat que foram destituídos pelo governo espanhol. Motivo: estes não compareceram na Audiência Nacional em Madrid, para a qual foram citados judicialmente, encontrando-se em território belga. Sobre estes recai a acusação de vários crimes públicos graves contra o Estado espanhol — sedição, rebelião, desobediência, prevaricação e desvio de dinheiros públicos.

4. O mandado de detenção europeu tem a sua origem na Decisão-quadro do Conselho de 13/06/2002 (2002/584/JAI). Funciona desde 2004 visando substituir os morosos processos de extradição até aí existentes entre Estados da União Europeia. Segundo estabelece o artigo 1, nº 1 dessa mesma Decisão-quadro “é uma decisão judiciária emitida por um Estado-Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado-Membro duma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.” Acrescenta o nº2 que os “Estados-Membros executam todo e qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente decisão-quadro.” No n.º 3 afirma-se ainda que “não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais consagrados pelo artigo 6 do Tratado da União Europeia.”

5. Pode um mandado de detenção europeu ser recusado pelas instâncias judiciárias do Estado que o deverá executar? O artigo 4 da referida Decisão-quadro do Conselho de 13/06/2002 (2002/584/JAI) refere vários casos, de cariz obrigatório ou facultativo, onde pode ser recusada a execução de um mandado de detenção europeu. Entre estes está, como indica o nº1 desse artigo, “o facto que determina o mandado de detenção europeu não constituir uma infracção nos termos do direito do Estado-Membro de execução”. O mandado de detenção europeu poderá, assim, não ser executado se os crimes de que é acusado Carles Puigdement e os membros da Generalitat que se encontram em território da Bélgica, não tiverem equivalência, no todo, ou em parte, no ordenamento jurídico belga — ou seja, se não existir a chamada dupla incriminação. Esse é um problema que enfrentam, por exemplo, as acusações de sedição e rebelião. Outro possível fundamento de recusa previsto, ou de condicionamento da execução do mandado, poderá ser a falta a garantias em matéria de direitos fundamentais no seu julgamento, tese invocada por Carles Puigdemont.

6. Teoricamente, estamos perante um processo puramente judicial que se baseia no princípio do reconhecimento mútuo das decisões judiciárias e em contactos directos entre as autoridades judiciárias de diferentes Estados europeus. Na realidade, um caso com estas características tem uma inevitável dimensão política e um potencial de conflito diplomático entre a Bélgica e a Espanha, com consequências também para a União Europeia. A estratégia do advogado de Carles Puigdemont, Paul Bekaert, que já tem um historial de defesa de casos de extradição de membros da ETA, pode, assim, assentar em três vias: (i) atacar a execução do mandado de detenção por não existir a dupla incriminação, no todo, ou em parte — ou seja, os factos de que é acusado serem crime em Espanha e na Bélgica — por exemplo, como já referido, quanto aos crimes de sedição e rebelião; (ii) procurar mostrar que os direitos fundamentais não estão garantidos em Espanha, no caso de ser julgado por esses crimes (Carles Puigdemont justificou a sua ida para a Bélgica invocando “a falta de garantias do sistema judicial espanhol e a sua vontade em perseguir ideias políticas”); (iii) usar sucessivos recursos judiciais para atrasar o processo e reforçar a atenção (e pressão) política sobre o caso.

7. Que impacto vai ter o processo judicial ligado à execução do mandado europeu de detenção emitido contra Carles Puigdemont e os seus colegas da Generalitat, nas eleições de 21 de Dezembro na Catalunha? Esta é a questão política central das próximas semanas, sobre a qual apenas podemos conjecturar nesta altura. O independentismo, após ter atingido um ponto político alto com o referendo de 1 de Outubro, foi perdendo rumo estratégico. Pelas suas hesitações e decisões pouco acertadas, perdeu, também, credibilidade junto do eleitorado da Catalunha e na opinião pública internacional. Assim, o problema crucial das eleições de 21 de Dezembro é o de saber se o conjunto dos partidos independentistas conseguem, ou não, uma maioria absoluta de deputados e de votos e formar novo governo. A eleição vai ser transformada numa espécie de plebiscito à questão da independência. Até agora as sondagens conhecidas não dão essa vitória aos partidos independentistas, o que, a acontecer  — ou seja, se tiverem uma vitória com maioria absoluta de deputados e de votos — irá reforçar a sua legitimidade.

8. Com este cenário político incerto e pouco favorável, uma hábil gestão política do caso judicial de que é alvo Carles Puigdemont pode ser um grande trunfo para alterar o rumo dos acontecimentos. Não por acaso, o Partido Democrático Europeu da Catalunha (PDeCAT), escolheu-o como candidato. A politização que permite o caso — porque as autoridades judiciárias da Bélgica, hipoteticamente, poderão recusar ou condicionar a sua extradição, o que será interpretado como uma falta de garantias dos direitos fundamentais em Espanha —, abre a possibilidade de um ataque político com previsíveis efeitos eleitorais. Mesmo que isso não aconteça, Carles Puigdemont tem uma jogada de último recurso nas mãos: apresentar-se, voluntariamente, junto da Audiência Nacional em Madrid, próximo das eleições, e esperar que as imagens da sua detenção em prisão preventiva façam o resto: alterar o voto dos catalães indecisos a favor dos partidos independentistas. Assim, as próximas semanas vão ser jurídica e politicamente tumultuosas e determinantes no rumo da questão da Catalunha.

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