Desmascarado um “escudo protector” do parasita da malária

Cientistas do Instituto de Medicina Molecular identificaram uma proteína que protege o parasita da malária quando infecta o hospedeiro. A descoberta pode servir para desenvolver fármacos que tenham como alvo a destruição deste “escudo protector”.

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Parasitas da malária (cor de rosa) multiplicam-se no interior de uma membrana (contorno verde) que os protege, no fígado de ratinhos Instituto de Medicina Molecular

Na fase inicial do processo de infecção, quando ainda se está a instalar silenciosamente nas células do fígado, o parasita da malária usa um “escudo protector” para evitar uma das muitas ameaças à sua sobrevivência. Uma equipa de investigadores liderados por Maria Mota, do Instituto de Medicina Molecular (IMM), em Lisboa, percebeu como é que o parasita escapa ileso a um sistema de “limpeza” celular, denominado autofagia, que nos defende de “visitantes” indesejados. Resta agora encontrar uma arma, um fármaco, capaz de danificar este escudo do parasita, deixando-o vulnerável ao natural processo de reciclagem celular.

O nosso organismo tem várias estratégias para eliminar componentes que nos podem fazer mal. Porém, alguns vírus e outros organismos aprenderam a “enganar” ou derrubar este sistema de autodefesa. Para responder a estas estratégias de ataque é necessário contra-atacar. O primeiro passo passa por identificar a estratégia do inimigo. No caso da malária, já foram identificados alguns pontos fracos que podem servir como alvos num contra-ataque em nossa defesa. Desta vez, segundo um artigo publicado esta segunda-feira na revista Nature Microbiology, a equipa do IMM centrou-se na acção do parasita na fase inicial da infecção, quando se instala no fígado do hospedeiro e adquire aí a capacidade de infectar glóbulos vermelhos e, assim, causar os sintomas característicos desta doença. No fígado, o parasita multiplica-se no interior de uma membrana que o envolve e que evita possíveis agressões das células à sua volta.

É óbvio que algo falha no nosso sistema de defesa, deixando que o parasita ganhe força e se multiplique. Um dos processos usados no ambiente intracelular para capturar e depois degradar material indesejado nas células é a autofagia, um complexo sistema de reciclagem e autodestruição das células que nos protege. Ora, o parasita da malária parecia conseguir escapar ileso a esta “limpeza”.

A equipa sabia que o processo da autofagia, que está dependente de uma proteína chamada LC3, era accionado após a infecção pelo parasita Plasmodium que causa a malária. Neste caso, estudou-se o Plasmodium berghei, uma versão que afecta os roedores e não causa a doença em humanos. Os marcadores da autofagia foram detectados e surgiam a decorar a tal membrana que envolve o parasita.

“Apesar de a autofagia ser accionada nas células do hospedeiro após infecção, e ao contrário do que se verifica com outros agentes patogénicos mais susceptíveis, o parasita da malária é resistente a este mecanismo de defesa celular”, refere o comunicado sobre o estudo. Como? Os cientistas descobriram que o parasita usa “uma proteína chamada UIS3 que se liga à proteína LC3 e forma uma espécie de escudo protector contra a autofagia”. Assim, anunciam no comunicado de imprensa, foi descoberto o seu “calcanhar de Aquiles”, até porque “sem esta protecção, o parasita fica vulnerável e é rapidamente eliminado pela célula do hospedeiro”. Maria Mota resume ao PÚBLICO que, no fundo, “esta molécula que foi descoberta no parasita é um inibidor fortíssimo de uma molécula que existe nas nossas células e que é central à autofagia”.

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Parasitas da malária protegidos por uma membrana a branco junto às células (a verde) do fígado de ratinhos IMM

No artigo que tem como primeira autora Eliana Real, da equipa de Maria Mota, são revelados os resultados de experiências em ratinhos que demonstram que sem esta proteína o parasita não é capaz de sobreviver dentro de células do fígado. Apesar das experiências terem sido realizadas com a versão do parasita que afecta os roedores, os investigadores acreditam que a ligação entre as duas proteínas também será encontrada com o parasita Plasmodium falciparum, que causa a forma de malária mais grave nos humanos e que é transmitido pela picada dos mosquitos anófeles (pela fêmea). “Não fizemos experiência com o Plasmodium falciparum, mas fizemos todos os testes in vitro com a proteína idêntica que existe neste parasita e funciona da mesma maneira”, refere Maria Mota, adiantando que as duas versões do parasita têm a mesma proteína ainda que com ligeiras diferenças. “Não é 100% igual mas vimos que funciona exactamente da mesma maneira.”

Com esta descoberta, a proteína UIS3 surge como um possível alvo para o desenvolvimento de novos fármacos contra o parasita da malária, nomeadamente contra as formas hepáticas da doença, que em algumas espécies de Plasmodium podem persistir no hospedeiro num estado dormente e causar a doença anos depois da primeira infecção, até porque este processo passa-se numa fase silenciosa da infecção em que ainda não há sinais da doença. O que significa, explica a cientista, que este futuro fármaco poderá servir para ser “usado em profilaxia, ou para pessoas que vão viajar ou trabalhar em regiões endémicas ou para militares”. “Ou iremos conseguir um fármaco que não é tóxico que podemos tomar a vida toda, todos os dias ou todas as semanas, ou então só o poderemos usar como profilaxia, durante curtos períodos de tempo.”

Identificar novos alvos terapêuticos é relevante numa altura em que se começa a registar, no Sudoeste Asiático, a ocorrência de parasitas resistentes aos fármacos de última geração contra a malária, como a artemisinina. 

A equipa de Maria Mota tem tentado conhecer várias das estratégias usadas por este parasita. Em Julho publicou um artigo na revista Nature que demonstrava que uma redução calórica de 30% na dieta de ratinhos com malária fazia abrandar a infecção. Nesse trabalho demonstrava-se que o parasita da malária (o Plasmodium falciparum) tem “a capacidade sensorial de determinar qual é o estado nutricional do hospedeiro”. Assim, os investigadores do IMM demonstraram que mais do que apenas saber o que comemos, este agente infeccioso é capaz de se adaptar ao ambiente nutricional. 

Mais recentemente, num estudo publicado em Setembro na revista Nature Microbiology e que aprofundava o trabalho sobre a influência do estado nutricional do hospedeiro, uma equipa de investigadores do IMM mostrou ainda que o aumento dos níveis de pró-oxidantes (químicos que induzem o stress oxidativo), causado por alterações na dieta, resultam numa redução de 90% da carga parasitária durante a fase hepática da infecção e, assim, conseguem uma diminuição da severidade da doença. 

Actualmente, a malária será responsável pela morte de uma criança a cada dois minutos e, apesar de uma redução do número de casos, todos os anos há cerca de 200 milhões de novas infecções. 

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