Mudanças à lei que regula a segurança privada estão prometidas há mais de um ano

Sector, que emprega mais de 37 mil seguranças com título válido e movimenta à volta de 600 milhões de euros por ano, é muito permeável à infiltração de grupos criminosos. Têm caído em saco roto os alertas das associações do sector que pedem mais fiscalização e mudanças à lei.

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Só este ano houve 38 queixas à PSP contra os seguranças que estão à porta do Urban Beach Daniel Rocha

Em Agosto de 2016, o Governo propunha-se pela voz da secretária de Estado adjunta e da Administração Interna, Isabel Oneto, eliminar “as ervas daninhas” do sector da segurança privada até ao final desse ano. A alteração da lei e a submissão dos candidatos a seguranças a um exame nacional, da responsabilidade da PSP, eram duas das promessas de então. Mais de um ano depois, o que mudou? “O Conselho de Segurança Privada vai discutir as questões relacionadas com o exercício da actividade de segurança privada, discussão da qual poderão decorrer iniciativas legislativas por parte do Governo”, escamoteia o gabinete de Oneto.

“Não mudou quase nada”, responde por seu turno Rogério Alves, presidente da Associação de Empresas de Segurança (AES), para lamentar que os muitos problemas de um sector que congrega mais de 37 mil profissionais, quase o dobro dos agentes ao serviço da PSP, só sejam falados “quando há uma cena de pancadaria à porta de uma discoteca ou um assalto a uma carrinha de valores”. Efectivamente, a violência perpetrada pelos seguranças à porta da discoteca Urban Beach, em Lisboa, na madrugada da última quarta-feira, e que determinaram o encerramento da discoteca por ordem do Ministério da Administração Interna (MAI) e a investigação da empresa para quem trabalhavam, a PSG, são só a ponta do icebergue num sector que movimenta acima de 600 milhões de euros por ano.

Mas estes valores, enunciados ao PÚBLICO pelo presidente da AES, respeitam apenas às empresas que funcionam enquadradas pela lei. Porque é neste campo da segurança privada que, a coberto ou não de uma licença de funcionamento, se digladiam grupos rivais que, nalguns casos, se impõem pela força dos punhos e pela extorsão aos empresários da noite, perante aquilo que a Associação de Empresas de Segurança (AES) qualifica como uma “inércia intolerável” por parte do Estado.

A proximidade deste sector com o da criminalidade organizada está, de resto, bem patente no último Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) que, não à toa, elege o reforço do controlo da segurança privada e da criminalidade violenta a ela associada como uma orientação estratégica para 2017. Isto depois de, em 2016, os grupos violentos e organizados terem continuado “a promover os seus ilícitos criminais procurando, sempre, instrumentalizar sectores de actividade que lhes permitam obter proventos económicos elevados, nomeadamente o da segurança privada”. E, acrescenta o RASI, a segurança privada desenvolvida no contexto da diversão nocturna é a que mais tem “consolidado, ao longo dos últimos anos, o seu perfil atractivo para a infiltração deste tipo de grupos”.

No âmbito das operações Mercúrio, desenvolvidas em Fevereiro e Agosto de 2016, houve 811 acções inspectivas a empresas de segurança privada. No final, foram feitas 24 detenções, levantados 93 autos e efectuadas 30 apreensões, entre armas e documentos. Fora daquelas operações, mas ainda no âmbito de outras acções de fiscalização à segurança privada realizadas em 2016, foram detidas 39 pessoas, detectados 123 crimes e 1926 infracções contra-ordenacionais. As operações Fénix, em Agosto de 2016, e Punho Cerrado, em Dezembro último, foram duros golpes que ajudaram a desmantelar várias redes mafiosas ligadas à segurança privada. Mas o sector continua a enfermar daquilo a que o presidente da AES chama a “ilegalidade fora de órbita” no sector da segurança privada. “Este fenómeno de ilegalidade absoluta, patológica, numa actividade essencial à segurança dos cidadãos, onde se infiltram grupos criminosos ou de capitais sujos, tem de ser reprimido com a máxima dureza”, exorta.

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Contudo, a lição essencial a retirar dos episódios de violência à porta do Urban Beach, ressalva Rogério Alves, remete-nos para outro tipo de ilegalidades: o das empresas que, actuando dentro do perímetro da legalidade, não cumprem a lei. A PSG – Segurança Privada, cujos seguranças estão à porta do Urban Beach e cuja actuação motivou 38 queixas à PSP só em 2017, está devidamente licenciada. Tanto que o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, já veio ontem determinar que a PSP fiscalize a sua actividade e convocar o órgão de consulta do MAI sobre estas matérias, o Conselho de Segurança Privada, para analisar o histórico de violência desta discoteca.

“Isto não pode ser uma coisa feita por impulso face a um acontecimento avulso. Deve ser uma prática sistemática”, reage Rogério Alves. Há 15 dias, já a AES tinha aproveitado a 3.ª Conferência de Segurança Privada para, entre críticas à “inércia intolerável do Estado face às más práticas do sector” que contribui para “o florescimento das ‘empresas pirata’”, perguntar o que foi feito do relatório que, em Março de 2016, fora entregue ao MAI. Neste relatório, cuja elaboração esteve a cargo de um grupo de trabalho mandatado pelo próprio MAI, apontavam-se problemas que iam dos fenómenos criminais “aos pagamentos por fora” que são “a praga” do sector, segundo Alves. Nos fenómenos criminais, conjugam-se crimes como “extorsão, tráfico de estupefacientes e de armas, auxilio à imigração ilegal e criminalidade económico-financeira, incluindo fraude fiscal e branqueamento de capitais”, aponta o relatório. E, entre rendimentos não declarados e a utilização de facturas falsas que induzem deduções fraudulentas de IVA e a diminuição da base tributável de IRS, “o Estado deixa de receber anualmente cerca de 30 milhões de euros em impostos e contribuições para a Segurança Social”. Problemas que, segundo a AES, impedem ainda “a criação de mais de quatro mil novos postos de trabalho directos no sector”.

O mesmo relatório, cujo grupo de trabalho se compunha de representantes do MAI, da GNR, PSP e PJ, além do Fisco e da inspecção de trabalho, desdobrava-se em recomendações. Uma delas visava acabar com o dumping no sector, instando os poderes públicos a certificarem-se que, na adjudicação de contratos públicos, nenhum seja adjudicado a empresas cujos preços decorrem de trabalho não declarado e do recurso a mão-de-obra intensiva e desrespeitadora dos horários de trabalho. É que o próprio Estado tem vindo a contratar empresas de segurança privada abaixo do preço de custo, o que levou o presidente da Autoridade para as Condições do Trabalho, Pimenta Braz, a considerar então, numa entrevista à RTP, que “o Estado, nas suas contratações de vigilância privada, devia ter mais cautela na forma como abre os concursos”. As restantes recomendações visavam a solidificação da actividade inspectiva multidisciplinar, por um lado, e a revisão da legislação reguladora da actividade.

Poucos meses depois, em Agosto de 2016, a secretária de Estado adjunta e da Administração Interna, Isabel Oneto, prometia uma alteração da lei até ao final desse ano. A implementação do exame nacional descentralizado, elaborado e fiscalizado pela PSP, para quem quisesse aceder à profissão de vigilante, era uma das promessas. A segunda passava por, como declarou então à RTP, criar um sistema capaz de prevenir os crimes nos espaços nocturnos. Isto porque, declarou então: “Isto não pode continuar a acontecer. As pessoas não se podem matar nas discotecas.”

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