Importunação sexual gera dois inquéritos por dia, mas assédio vai além disso

Em 2016 foram abertos 733 inquéritos pela prática do crime de importunação sexual, mas pouco se sabe sobre o tipo de comportamentos que resultam em condenações. Para especialistas, a falta de dados oficiais desagregados sobre o assédio sexual é fruto da desvalorização do problema.

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LUSA/CHRISTOPHE PETIT TESSON

Em Portugal, ainda se conhece pouco sobre a realidade do assédio sexual a partir das estatísticas judiciais. Os dados mais próximos que é possível recolher referem-se ao crime de importunação sexual (artigo 170.º do Código Penal), que abrange as “propostas de teor sexual” (que poderão incluir piropos mais agressivos ou comentários noutros contextos), “actos exibicionistas” e “constrangimento a contacto de natureza sexual”.

Tal como o PÚBLICO noticiou em Agosto, este tipo de situações levou à abertura de 733 inquéritos no ano passado — dois inquéritos por dia, de acordo com dados do Ministério Público. No mesmo período, foram deduzidas 75 acusações pelo mesmo tipo de crime. Fontes consultadas pelo jornal não estavam a par de nenhuma condenação até o momento.

Para Teresa Féria, presidente da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, esta falta de dados desagregados e facilmente disponíveis é reflexo da forma como se legislou sobre o assédio sexual, nomeadamente em 2015, na transposição de alguns aspectos da Convenção de Istambul para a lei portuguesa. “Como na importunação sexual cabem várias condutas, é natural que não se saiba exactamente a que é que se referem os dados”, nota a juíza.

Portugal tem falhado em geral na organização das estatísticas sobre violência de género, de acordo com o que é estabelecido pela convenção de combate à violência doméstica e violência contra as mulheres do Conselho da Europa. E no que toca ao assédio sexual, não é possível conhecer a realidade com base nos dados oficiais, já que não se obedeceu, em primeiro lugar, à definição proposta pela convenção do Conselho da Europa, ratificada por Portugal em 2013. “A Convenção de Istambul impõe que haja registo estatístico destas condutas, mas obviamente não se podem organizar estatísticas se não se tiver os dados necessários”, lamenta Teresa Féria.

Em Julho deste ano, o primeiro inquérito municipal à violência doméstica e de género em Lisboa mostrou que a maioria dos casos de violência sexual dizem respeito a actos que configuram assédio sexual. “Tentativas de contacto físico com conotação sexual”, “frases de duplo sentido com conotação sexual” ou “mensagens escritas e/ou telefónicas com o propósito de o/a assediarem” foram as formas mais comuns destes actos de assédio.

Uma análise dos resultados enviada ao PÚBLICO por Manuel Lisboa, coordenador do estudo, mostra que “os resultados revelam que homens e mulheres recebem piropos com bastante frequência”. Ao analisar as reacções, é possível perceber diferenças: “Enquanto nas mulheres há uma maior probabilidade de dizerem que se sentem incomodadas [20,1%] ou ofendidas [3,1%], nos homens há uma maior probabilidade de se sentirem felizes, elogiados, de acharem graça [26,2%].”

Das 1314 mulheres entrevistadas, 961 tinham recebido piropos; destas, apenas 65 tinham ouvido “frases de duplo sentido, com conotação sexual em que se tenha sentido ofendida”. Contudo, “as mulheres não parecem fazer uma associação entre este conceito e o de importunação sexual, conforme descrito na lei”, refere a análise aos dados do inquérito municipal.

É neste campo das percepções que se joga a importância para as mulheres de que estes comportamentos sejam penalizados na lei. Para Cláudia Múrias, que coordenou o projecto da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) Assédio sexual Quebrar invisibilidades, o problema não foi devidamente valorizado. E a falta de dados oficiais desagregados sobre o assédio sexual é fruto disto. “Em 2015 podia-se ter ido mais além exactamente pelas obrigações com a Convenção de Istambul, e ter tornado o assédio sexual um crime autónomo, independentemente de ocorrer no trabalho, na escola, na rua”, considera a coordenadora. Em 2014, o projecto serviu de base à apresentação de uma iniciativa legislativa cidadã para reivindicar a criminalização do assédio sexual.

A propósito da onda de denúncias de assédio sexual que se seguiu ao caso de Harvey Weinstein, nos Estados Unidos, Cláudia Múrias afirma que “é preciso continuar a falar sobre isto, porque tudo isto vai fazendo a diferença”. “Passam a ser assuntos, e à medida que se vai falando as camadas mais novas vão censurando estes comportamentos — e é assim que se vai mudando.”

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