Crise entre Marcelo e Costa? Os dois precisam um do outro

Mudam-se os líderes do PSD, mudam-se as vontades do Presidente? Irá mesmo Marcelo alterar a atitude em relação ao Governo ou ambos têm mais a ganhar com tréguas? Será tudo isto alheio à saída de Passos? Vários pontos de vista sobre a tensão entre Belém e São Bento.

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A relação entre Marcelo e Costa azedou, mas ambos têm interesse em repor a cooperação Nelson Garrido

Da lua-de-mel para a lua de fel? No meio de uma das maiores tragédias em Portugal, a cordial relação entre Belém e São Bento azedou. Para os politólogos ouvidos pelo PÚBLICO, o Presidente da República até pode ter saído menos beliscado de toda a embrulhada institucional, mas continua a precisar do primeiro-ministro. E António Costa a precisar de Marcelo Rebelo de Sousa. Um casamento de conveniência, em vez de um divórcio?

“Não é apenas Costa que precisa de Marcelo para que a sua popularidade se mantenha no eleitorado mais centrista. É também Marcelo que, num contexto de reeleição e de um PSD fraco, tem todo o interesse em cooperar com Costa”, responde a politóloga Marina Costa Lobo. E acrescenta: “Embora Pedrógão tenha fragilizado mais o Governo, a guerrilha institucional não favorece nem Governo nem Presidente a prazo, porque ambos ganham com um bom relacionamento.”

O investigador António Costa Pinto vai pelo mesmo caminho: “Em princípio será do interesse dos dois manterem um bom relacionamento, até porque a ‘lua-de-mel’ apresentada publicamente tem por detrás dois homens com grande experiência política”, defende também por email.

Terão, então, Marcelo e Costa um faro político e um pragmatismo demasiado apurados para se deixarem levar por este tipo de tensões? “Este momento acaba com a ideia de que tínhamos entrado na política dos afectos, que sempre foi uma ilusão. Temos um Governo minoritário de esquerda no quadro de um regime semipresidencial em que o Presidente de direita está no primeiro mandato. Estão por isso condenados a entenderem-se porque ambos precisam um do outro”, defende Marina Costa Lobo.

Apesar de também alinhar nessa tese, Costa Pinto deixa um aviso: “Quer Marcelo, quer António Costa são políticos experientes e as suas relações serão sempre dominadas pelo interesse político próprio. Mas é evidente que, dada a natureza unipessoal da instituição presidencial, o Governo (e os partidos de oposição) terá de se habituar ao ‘estilo político’ de Marcelo Presidente e a um maior intervencionismo discursivo e não só.” E acrescenta: “Os sinais de ameaça de ‘populismo presidencial’ e excesso de intervenção irão seguramente aparecer aqui e acolá. O semipresidencialismo é assim. Tem regras informais e poderes definidos na Constituição, mas é mais plástico do que pode parecer.”

Embora sem querer sobrevalorizar os “episódios” que aconteceram entre Belém-São Bento, o politólogo André Freire considera que a lua-de-mel acabou. “E não por acaso na altura da mudança da liderança do PSD. Marcelo Rebelo de Sousa também é um político”, diz, reconhecendo, por um lado, que o Chefe de Estado é muito popular, mas lembrando, por outro, que no sistema português também “está mais salvaguardado das agruras”, porque “não governa”. Por isso, “tenderá a ser o menos beliscado”.

A polémica estalou quando o PÚBLICO avançou que o Governo recebeu com surpresa e choque a declaração do Chefe de Estado ao país, sobre a resposta que o executivo devia dar ao drama dos incêndios. Foi uma declaração dura, um murro na mesa, um ultimato: ou o Governo dava prioridade à reforma da floresta e à prevenção de fogos ou Marcelo exerceria “todos os seus poderes”. Mais: tinha de haver uma remodelação governamental.

Ora, a equipa liderada por Costa terá ficado de boca aberta porque, segundo relatos feitos ao PÚBLICO, Marcelo estaria a par das respostas que o Governo preparava e nunca terá discordado delas. Mas, no dia a seguir à manchete do PÚBLICO, o Presidente apressava-se a responder: “Chocado ficou o país com a tragédia vivida.”

Marina Costa Lobo considera natural que as informações circulem entre Presidente e Governo, mas avisa que “o que o eleitorado guarda não são esses pormenores, mas sim quem foi capaz de reagir com humildade política e quem, à outrance, quis negar responsabilidades políticas”.

O “velho manipulador” e a “travessia do deserto”

Isto significa que, para os cidadãos, a querela Belém-São Bento terá pouco peso quando comparada com a forma como as duas figuras do país reagiram perante as dificuldades. Se estivéssemos perante uma fotografia, os portugueses continuariam a ver Marcelo como o Presidente, com taxas de aprovação de 80% nos barómetros políticos, que espalha afectos por um país devastado, e não como político calculista e oportunista. Costa surgiria mais desfocado, acusado de não ter demonstrado empatia, nem feito um sincero pedido de desculpas.

Uma imagem que está, porém, longe de significar que o “estado de graça” do Governo acabou, defende André Freire, lembrando que há um mês o PS teve uma “vitória retumbante” nas eleições autárquicas. “Esta segunda crise dos incêndios foi devastadora. Não significa que não haja responsabilidades do Governo, mas não é uma atribuição linear e automática”, diz, sublinhando que para a tragédia contribuíram “vários factores e um deles chama-se êxodo rural”. 

Já Marina Costa Lobo, mesmo fazendo uma avaliação mais dura da prestação do Governo, considera que o executivo ainda pode recuperar a imagem se os bons resultados económicos se mantiverem.

“Este foi um Verão difícil para o Governo”, começa por dizer, referindo-se à tragédia que mostrou “ao país um Governo fragilizado, um Estado sem capacidade de proteger os cidadãos, e falta de coordenação entre serviços”. Depois, os portugueses viram um António Costa com menos tacto para gerir um momento simultaneamente tão complexo e delicado: “A forma como o primeiro-ministro geriu a crise de Estado, e a incompetência da tutela, agravou a fragilidade do Governo. Costa devia ter demitido Constança Urbano de Sousa no seguimento das 64 mortes por responsabilidade política. A sua carta de demissão em Outubro prova que ela concordava também com a sua saída nessa altura”, recorda a investigadora, acrescentando que “este episódio mostra a fragilidade do executivo e essa é uma imagem que Costa terá de reverter”.

Como? “Penso que seja possível se noticias económicas recentes continuarem. Mas, de facto, este Verão serviu para percebermos que a relação entre Costa e Marcelo é condicional, e Costa viu a sua aura de primeiro-ministro competente danificada”, entende Marina Costa Lobo.

Também para António Costa Pinto quem se fortaleceu foi o Presidente: “Sai sempre mais forte desta eventual tensão conjuntural, se ela se prolongar. Primeiro porque não governa, depois porque teve uma reacção de proximidade muito grande perante os atingidos pelos incêndios. Mesmo que se saiba que estava a par dos planos do Governo e seja denunciado como o ‘velho manipulador’ do passado, conseguiu ficar associado à maior rapidez das medidas de emergência do Governo e do assumir das ‘responsabilidades políticas’ com a demissão da ministra.”

Uma tensão institucional, um Governo que saiu fragilizado, um novo rosto do principal partido da oposição – todos estes factores inaugurarão um novo ciclo político? “As mudanças no líder do PSD podem ser, dependendo dos resultados, mais um regresso ao passado do que um novo ciclo. A vitória de alguém como Pedro Santana Lopes, como candidato a primeiro-ministro, sendo que foi um dos primeiros-ministros mais fracos de sempre, não irá inaugurar um novo ciclo. Irá servir apenas para uma continuação da direita na sua travessia do deserto”, diz Marina Costa Lobo.

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