Boi ou vaca? O que conta é o sabor das carnes maduras do gado velho

Animais de trabalho e vida em comunhão com a natureza, são ambos maravilhosos e podem ser saboreados durante as V Jornadas Gastronómicas do Boi de Trás-os-Montes. Enquanto houver.

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“A carne tem que saber a carne e, por isso, nada de temperos.” É com a autoridade que lhe conferem as décadas que já leva a lidar com carnes grelhadas que Iñaki Viñaspre afasta a ideia de qualquer mistura com os sabores naturais do costeletão de boi velho. Um corte com quase dois quilos, três dedos de espessura e um rebordo vigoroso de gordura amarela.

Antes, tinha aconselhado a friccioná-la com os dedos para lhe tomar o sabor. O unto que se agarra ao indicador quase dava para barrar o pão. Gordura densa, o aroma quase lácteo de uma manteiga artesanal, sabor intenso, fresco e picante, a evocar ervas húmidas e um suave toque salgado. É o rasto do pasto, dos campos de ervas frescas e dos fenos que dão conta da história de vida do animal. Uma alimentação natural, sem complementos ou aditivos químicos.

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No restaurante Vinum, em Vila Nova de Gaia, as Jornadas Gastronómicas do Boi de Trás-os-Montes vão já na quinta edição e aquilo que Iñaki quer pôr em evidência é, precisamente, essa característica natural e intensidade de sabor das carnes dos animais com idade e uma vida de comunhão com a natureza. Uma tradição que faz parte da cultura gastronómica do seu País Basco natal, mas que cada vez mais se alimenta de animais das zonas montanhosas do Minho, Trás-os-Montes e Galiza.

Raros redutos que resistem ainda aos tractores e aos cultivos intensivos, onde a vida se faz numa lógica de subsistência, equilíbrio e respeito pelos ciclos da natureza. O gado é também companheiro, está na base dos trabalhos agrícolas e tem um papel central na actividade das comunidades. Os animais são bem tratados, cuidados e até exibidos em momentos de solenidade e festa e são chamados pelo nome, como se fizessem parte da família.

É em busca destes redutos que Imanol Jaca passa os dias. Responsável há 28 anos pela Txogitxu, uma empresa basca especializada em carnes de elevada qualidade e um dos maiores fornecedores em todo o mundo, conta que este ano fez já mais de 150 viagens à procura destes animais com identidade e história de vida própria. Gado velho, que concluiu o ciclo de vida útil de trabalho, mas cujas carnes estão no ponto óptimo de consumo.

Imanol é também consultor do Grupo Sagardi, de Iñaki Viñaspre, que gere restaurantes em Barcelona, Londres, Buenos Aires e México. E também o Vinum, nas Caves Grahams, em Gaia, onde nestes últimos anos fizeram das Jornadas do Boi Velho um evento com destaque no calendário gastronómico.

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Desta vez, o desafio inclui um duelo de sabores. O confronto entre as carnes de boi e de vaca, para aferir de diferenças ou semelhanças na degustação das carnes do gado velho que é uma velha tradição do Norte de Portugal e da Galiza. O boi tem, por tradição, maior cotação e é também mais raro, mas será que essa é uma diferença que se nota na boca?

A vaca veio de uma pequena aldeia de montanha no interior da Galiza, enquanto o boi foi identificado por Imanol já em zonas mais baixas do Minho, numa pequena aldeia do concelho de Barcelos onde ainda resistem bolsas de uma vida rural em extinção. Animais com cerca de 500 quilos e carnes apenas com maturação natural após o abate.

E a verdade é que, mesmo não sendo profundas, notam-se algumas características de diferenciação entre as carnes. Mesmo na observação à vista, sendo mais evidentes as linhas de textura muscular na carne do boi, tanto antes como depois de cozinhada. Também o sabor parece mais intenso e afirmativo, enquanto na vaca é mais harmonioso, a textura mais macia e o corte de aspecto mais marmoreado.

Qual é melhor? São ambas maravilhosas! Para lá de naturalmente subjectiva, a resposta será também a nosso ver inconclusiva. É que se às primeiras impressões a intensidade de sabor da peça do boi causa maior impacto, já na fase posterior de degustação é mais cativante a harmonia e equilíbrio do sabor da carne da vaca.

E acima de tudo são diferenças que se notam nestes dois animais concretos, mas que de forma alguma permitem estabelecer um padrão entre o boi e a vaca. Iñaki é de opinião que a diferença pode até resultar mais da história de vida de cada um destes animais que da condição de macho ou fêmea. “Não é como a Coca-Cola. O produto não é constante e depende da natureza e do contexto de vida do animal”, diz.

Importante mesmo é que o cozinheiro escolha bem o produto e respeite as suas características, sublinha ainda o especialista basco, mostrando estar “radicalmente contra a moda das maturações”. E para respeitar as características basta que a carne seja naturalmente maturada após o abate. Significa isto que deve “repousar no frio para que os músculos do animal relaxem, as gorduras superficiais e infiltradas se envolvam com a carne e os processos químicos naturais comecem a desenvolver-se”.

A isto Iñaki Viñaspre chama “amadurecimento da carne”, num ambiente controlado, em câmaras de frio e com ventilação e humidade a 70%, durante pouco mais de 20 dias. “O que se pretende é encontrar o autêntico, o sabor e textura que contem a história de vida do animal. A partir daí, começam a surgir alterações do sabor e aroma e até bactérias que podem ser tóxicas”, adverte.

Muito importantes também para preservar as características do animal são o corte e a forma como é cozinhado o costeletão. A medida do corte é feita pelo osso, devendo ter sempre um mínimo de quatro centímetros e repousar umas horas à temperatura ambiente. Carvão de qualidade (aromas suaves), já sem chama, e calor potente de forma a selar a carne rapidamente e concentrar no seu interior todos os sucos. O sal é colocado apenas sobre a parte já selada, que impede a penetração e consequente desidratação.

Um menu especial para o costeletão

O costeletão de vaca velha faz parte da oferta regular do restaurante Vinum e pode ser apreciado durante todo o ano, mas já o de boi corresponde apenas às carnes do animal seleccionado para as Jornadas Gastronómicas do Boi Velho de Trás-os-Montes. O programa, que arrancou a 24 de Outubro, dura três semanas mas nada garante que as carnes do macho durem o tempo todo. Boi enquanto houver, portanto.

Para acompanhar a degustação dos imponentes costeletões grelhados em brasas de carvão, o Vinum preparou um menu especial, que inclui um interessante guisado com bacalhau e um queijo Stilton único, de confecção artesanal.

Único e irresistível é também o pão de fabrico próprio e num estilo artesanal com farinhas moídas à moda antiga, em mó de pedra. Também merece prova atenta o azeite virgem extra Quinta do Ataíde, uma das propriedades do Grupo Symington, ao qual pertence também o restaurante.

De entrada, é servida uma estimulante combinação agridoce com alheira de Mirandela e maçã caramelizada. Segue-se o guisado com lascas de bacalhau, amêijoas e feijão branco, uma surpreendente combinação de sabores com fundo caldoso que resulta deveras interessante. Intensa e saborosa, com notas salgadas (do bacalhau) e picantes (de malagueta) ao despique mas sempre afinadas e sem destoar.

O costeletão é laminado e servido numa recomposição da sua estrutura inicial. As carnes são separadas do osso, mas há que esquecer elegâncias e recorrer ao estilo primitivo para pegar no osso e saborear as carnes mais saborosas que lhe estão juntas.

O Stilton, servido com marmelada de citrinos e doce de maçã, vem de Nothinghamshire, onde é criado pelas mãos de Billy Kevan, e parece ter sido feito na exacta medida para o Porto Vintage Graham’s 1970 que é sugerido em casamento.

Sem vinhos, o preço do menu diverge consoante o costeletão é de boi (125€) ou de vaca velha (85€), uma discrepância que é justificada pela disparidade de preço dos animais, que tem por base fundamentalmente a raridade das reses masculinas. O suplemento de vinhos sugeridos (32€) inclui os dois tintos 2014 da Quinta do Ataíde e o já referido Porto Vintage 1970.

A Fugas esteve na abertura das jornadas a convite do Vinum

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