O monge que quis reformar a Igreja e mudou o mundo

Há 500 anos, Martinho Lutero divulgava as suas 95 Teses, criticando a venda de indulgências pela Igreja Católica. Não se via como revolucionário, mas as suas ideias serviram de rastilho a um movimento que reconfigurou a Europa e está na origem do capitalismo moderno.

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A Reforma Protestante não teria tido o impacto que teve se a invenção da prensa móvel por Gutenberg, algumas décadas antes, não tivesse permitido a ápida circulação das teses de Martinho Lutero por toda a Europa da época

Se acreditarmos que há indivíduos que influenciam de facto o curso da História, e não são apenas representantes mais ou menos simbólicos de dinâmicas que os transcendem e que no limite os dispensariam, o monge e teólogo agostiniano Martinho Lutero (1483-1546) é um dos candidatos mais óbvios. A sua contestação do comércio de indulgências, e a persistência com que sustentou esta e outras convicções contrárias à doutrina católica então em vigor, serviram de rastilho à Reforma Protestante, um movimento que não só gerou um novo braço do cristianismo que desde então não cessa de crescer – ao mesmo tempo que se divide em facções cada vez mais numerosas –, como transformou profundamente a Europa do seu tempo, promovendo a alfabetização, libertando a cultura erudita do obstáculo do latim e popularizando a música e as artes, favorecendo a liberdade de pensamento, contribuindo decisivamente, ainda que talvez não deliberadamente, para criar as condições que permitiram o florescimento de uma economia capitalista.

Pretender inventariar, mesmo que muito resumidamente, as consequências da Reforma Protestante seria um exercício espúrio, tão disseminadas e perenes são as marcas que deixou, mas vale a pena lembrar que, cem anos após a polémica lançada por Lutero, um grupo de puritanos radicais que se separara da Igreja Anglicana atravessou o Atlântico a bordo do Mayflower e fundou uma colónia que viria a desempenhar um papel crucial na história das origens dos Estados Unidos, cuja identidade contribuíram para formatar, com efeitos visíveis até hoje.

No dia 31 de Outubro de 1517, se aceitarmos a tradição, Lutero, que ia fazer 34 anos dentro de dias e era já um teólogo e professor de créditos firmados, terá cravado as suas célebres 95 Teses na porta da igreja do castelo de Wittenberg, no então Eleitorado da Saxónia, gesto que era um convite público a que as suas proposições, como ele próprio lhes chamava, fossem debatidas por outros académicos. O episódio não está confirmado, mas também não importa muito, já que é certo que, nesse mesmo dia, enviou o mesmo documento ao arcebispo de Mainz, que conseguira autorização do Papa Leão X para recorrer à venda de indulgências como meio de pagamento de uma avultada dívida que contraíra junto do banqueiro bávaro Jakob Fugger. O próprio Papa promulgara uma indulgência plenária para todos os que contribuíssem financeiramente para as sumptuosas obras de reconstrução e decoração da Basílica de S. Pedro. E ambos recorriam aos serviços do frade dominicano Johann Tetzel, um zeloso e agressivo promotor de vendas que, em nome da Igreja Católica, concedia a remissão das penas temporais devidas à justiça divina aos que estivessem dispostos a abrir generosamente os cordões à bolsa. Parece que o slogan favorito de Tetzel correspondia, em alemão rimado, a algo como: “Assim que a moeda tilinta no cofre, a alma salta logo para o céu”.

Lutero queria reformar a Igreja Católica, mas nunca pretendeu provocar um novo cisma. E se o tráfico de indulgências o indignava, parecia-lhe ainda assim uma questão secundária perante as mais fundas divergências que o iam afastando irremediavelmente da ortodoxia católica e que se prendiam com pontos centrais de doutrina, como a fé, a graça ou a salvação. Mas foi a persistência com que se recusou a repudiar as suas críticas à venalidade e à corrupção daquela que era ainda a sua igreja, e o impressionante ritmo a que ia produzindo novos trabalhos ainda mais polémicos, que deram o impulso inicial a um movimento que iria crescer e ramificar-se de forma tão rápida e avassaladora que a hierarquia católica, para sua provável surpresa, já não o conseguiu travar. É por isso que o início da Reforma se comemora no dia 31 de Outubro, feriado estadual em vários Länder alemães, e que os 500 anos do movimento são assinalados esta terça-feira um pouco por todo o mundo. Em Portugal, a Igreja Evangélica Lisbonense (presbiteriana) evoca a data com uma celebração litúrgica que a RTP transmitirá em directo a partir das 20h30.

A ajuda da imprensa

“Nos séculos XV e XVI a Igreja Católica estava numa deriva, havia o sentimento de que o cristianismo que se vivia nas igrejas, e a própria vida dos padres, não seguia propriamente os ensinamentos de Jesus, e eram muitos os católicos, mesmo em Portugal, que achavam que era necessária uma reforma”, diz o pastor Abel Pego, da Igreja Baptista de Cedofeita, no Porto, lembrando que a crise vinha muito de trás e que a gota de água que fez transbordar o copo foi o comércio de indulgências. “Se se tivesse dinheiro, pagava-se uma indulgência plenária, que era a mais cara, e ficava-se com os pecados todos perdoados”. Uma prática que naturalmente condena, mas que não o impede de sugerir, com bem-humorada sinceridade, que podia ter sido usada para piores fins: “Dá gosto olhar para aquela fabulosa Basílica de S. Pedro, com todos os seus tesouros artísticos”.

Para Abel Pego, o contributo pessoal de Lutero para a Reforma não deve ser subestimado – “era um homem com uma extraordinária capacidade de trabalho e uma persistência notável” –, mas o movimento não teria tido o impacto que teve sem o recurso à prensa móvel, que Gutenberg inventara alguns anos antes e que “permitiu que as novas ideias se espalhassem por toda a Europa a uma velocidade incrível”. Um factor tecnológico a que o pastor soma ainda “a conjuntura política do Sacro Império Romano-Germânico, com os príncipes eleitores a aproveitarem o movimento para se tentarem libertar do poder do novo imperador, Carlos V”.

Resumindo e simplificando o essencial da doutrina luterana, pode dizer-se que assenta em três pilares: o princípio de que a Bíblia, livremente interpretada pelo crente, é a autoridade doutrinal máxima, sobrepondo-se às interpretações tradicionais e às decisões de concílios ou papas; a proposição de que só Cristo é intermediário entre Deus e o homem, dispensando portanto toda a estrutura sacerdotal da Igreja; e a crença, bebida nas epístolas de S. Paulo, de que o pecador é justificado apenas pela fé, por graça sempre imerecida de Deus, e que não está ao seu alcance fazer seja o que for que possa ajudá-lo a assegurar a salvação.

Convidado várias vezes a repudiar os seus escritos, e tendo-o sempre recusado, Lutero foi subindo o tom das acusações e acabou por ser excomungado por Leão X a 3 de Janeiro de 1521. Mas, no final desse mesmo mês, Carlos V solicitou-o a comparecer na assembleia real reunida em Worms, onde deveria rejeitar ou confirmar as suas proposições. Mais uma vez, Lutero recusou retractar-se e, enquanto discutiam o destino que lhe haviam de dar, deixou a Dieta de Worms de regresso a Wittenberg, tendo sido raptado pelo caminho, num sequestro encenado pelo seu protector Frederico III, príncipe eleitor da Saxónia, que o escondeu durante um ano no castelo de Wartburg. Foi neste período de clandestinidade que o ex-frade agostinho realizou um dos seus feitos mais notáveis, a tradução do Novo Testamento, que o creditou como um dos criadores da moderna língua alemã.

Mas também não lhe faltavam dimensões menos recomendáveis: foi um anti-semita particularmente virulento, mesmo para os costumes da época, e, se denunciou a promiscuidade entre a Igreja Católica e o poder temporal, ele próprio esteve sempre estreitamente ligado à nobreza alemã e não hesitou em recomendar que as revoltas camponesas (que as suas ideias, aliás, tinham ajudado a instigar) fossem reprimidas sem dó nem piedade, ou que facções protestantes radicais, como os anabaptistas, fossem perseguidas e massacradas.

“O grande erro de Lutero foi a incapacidade de se libertar da sua ligação ao poder, um problema que Calvino [o teólogo que está na origem das chamadas igrejas reformadas] também teve”, lamenta Abel Pego, para quem uma das consequências sociais mais benéficas e marcantes desse primeiro protestantismo foi a disseminação cultural de uma “ética do trabalho”. Sem propriamente subscrever a famosa tese de Max Weber de que a ética protestante está na origem do capitalismo, o pastor evoca a sua própria experiência num cantão protestante suíço, onde estudou, para descrever o tipo de educação a que foi submetido: “Diziam-nos que tínhamos de trabalhar bem e honestamente com o fim de alcançar a excelência, e que devíamos ser frugais, porque o dinheiro que recebíamos não era verdadeiramente nosso e fora-nos dado para que o administrássemos”. Ora, argumenta, “se as pessoas trabalham muito e têm de acumular ou partilhar o dinheiro que ganham, não admira que acabem por enriquecer”.

Uma experiência que também testemunhou nos Estados Unidos, onde “mesmo os Rockefeller ou o Colgate, que tinham fortunas fabulosas, educavam os filhos de forma muito rígida: o dinheiro era contado, e no Verão iam trabalhar nas quintas, a ordenhar as vacas, para compreenderem o valor do trabalho”.

O triunfo da alfabetização

Luís Amaral, medievalista e professor de História da Igreja, não duvida de que os Estados Unidos são “um dos claros triunfos” da Reforma. “É uma lição para todos nós que esses puritanos perseguidos que começaram a construir o país, e que pertenciam a grupos extremamente radicais, tenham sido os primeiros a reconhecer a absoluta liberdade de todos”, diz, embora reconhecendo acidentes de percurso, como “o vergonhoso exemplo de perseguição” que foi o episódio das supostas bruxas de Salém.

Como o pastor baptista, que conhece bem de partilhadas actividades ecuménicas, o historiador, assumidamente católico, também sublinha que o impacto do movimento não pode ser percebido se obliterarmos os contributos de Lutero ou Calvino, mas é igualmente incompreensível se ignorarmos a “conjugação de factores” que se perfilou na Europa do início do século XVI, e que, no plano político, a par das tensões internas do Império já referidas por Pego, incluíam o receio de ingleses e franceses do excessivo poder de Carlos V. “Se todos os seus projectos se concretizassem, dois terços da Europa ficariam nas suas mãos, numa altura em que a Expansão já é à escala mundial e todas as potências intervêm”.

Um contexto que ajuda a explicar que a coroa inglesa tenha decidido “nacionalizar” a Igreja e os seus avultados bens, fazendo no século XVI o que Portugal veio a fazer no século XIX com a extinção das ordens religiosas.

Mas este é também um período em que “os europeus já não estão sozinhos e contactam com mundos muito interpelantes e muito diferentes entre si”, nota ainda Luís Amaral. “Se na Índia se confrontam com uma civilização que querem dominar, mas que culturalmente está uns furos acima, ao mesmo tempo chegam ao Brasil, que ninguém sabia que existia, e muito menos os seus habitantes, e há mesmo quem defenda que estes são pré-adâmicos, e portanto não teriam pecado e eram especiais, não podiam ser escravizados”.

É neste contexto de mudança acelerada e difícil de digerir que “o grande sucesso económico que vão ter as nações do Norte na segunda leva da Expansão levará muita gente a acreditar, para usar a terminologia de Max Weber, que a ética protestante tem relações com as origens do capitalismo”, diz o historiador, que não nega a sua contribuição, mas que a cruza com conjunturas específicas que concorreram no mesmo sentido, como o facto de a Inglaterra, quando perdeu os seus domínios continentais no final da Guerra dos Cem Anos e foi empurrada para as ilhas, se ter “visto obrigada a transformar-se numa nação marítima e a construir uma marinha como ninguém tinha tido, o que lhe deu uma capacidade de actuação que depois produziu resultados”.

Não menos importante é a circunstância de, “nos países protestantes, serem demolidas todas as estruturas da Igreja, criando-se, do ponto de vista económico, um espaço de manobra que não existe na Europa que permanece católica, onde se continua a investir em estruturas como os mosteiros a as igrejas, grandes acumuladores de capital não reutilizável que não potenciam o investimento”. Já no lado protestante, conclui, “esse dinheiro começa a ser desviado para instituições que promovem o desenvolvimento financeiro, e a partir de certa altura, como a riqueza atrai riqueza, o crescimento deixa de ser aritmético e passa a ser geométrico”.

Uma abolição de intermediários que também resulta, por necessidade, na progressiva alfabetização de todos os que agora eram convocados a ler a Bíblia – “é um dos mais extraordinários efeitos da Reforma”, defende o historiador –, tal como a tradução das Escrituras ou a exigência de que a música litúrgica seja cantada em língua vernácula contribuem para popularizar a cultura elevada.

“A Reforma Protestante moldou antes de mais a Europa, numa altura em que esta está a dar o salto para fora de si”, resume Luís Amaral, “e do ponto de vista estritamente confessional é mais um braço que renova e potencia o cristianismo”. Mas “acabará também por favorecer, convictamente ou não, a alfabetização, o desenvolvimento cultural e as artes, e terá um sucesso indiscutível na promoção da economia capitalista”. E não deixa de ser irónico, sugere, “que o mundo protestante, tão austero, tenha sido o primeiro grande contribuinte líquido para a acumulação que permitiu o capitalismo moderno”.

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