A ambição é grande. A realidade nem tanto

Jean-Claude Juncker vem a Portugal participar no Conselho de Estado para discutir o futuro da Europa e os temas em aberto entre Lisboa e Bruxelas.

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Juncker vem a Lisboa construir consensos para os grandes temas do futuro da Europa Enric Vives-Rubio

Mario Draghi já veio ao Conselho de Estado convidado pelo Presidente da República em Abril do ano passado. Fez sentido. Foi ele, à frente do BCE, quem teve a intervenção decisiva no Verão de 2012 para impedir a implosão do euro no auge da crise da dívida. Desta vez, Marcelo convidou alguém que se considera um bom amigo de Portugal (o que é verdade) e que presidirá até 2019 à Comissão Europeia. Jean-Claude Juncker chega a Lisboa numa visita que não se resume à sua presença em Belém. Almoça com o primeiro-ministro, que irá com ele a Coimbra para receber um doutoramento honoris causa. A sua presença no Conselho de Estado também faz sentido. A União Europeia entrou numa fase de aceleração da sua agenda política, depois das “chicotadas” do Brexit e da eleição de Donald Trump, que se pode traduzir numa ruptura de consequências imprevisíveis na velha e sólida relação transatlântica. Ouviu as sirenes de alarme. Não tinha outro remédio. A crise deixou feridas que ainda não sararam. Pela primeira vez desde a sua fundação, o projecto europeu enfrentou a possibilidade de sucumbir. Essa fase já passou, mas a emergência dos populismos e dos nacionalismos, com a sua marca comum antieuropeia, continua a pairar sobre o futuro. E cair na tentação de esquecer o que correu mal nos últimos anos, em lugar de tirar as devidas lições, é um risco que permanece.

“Brexit” até ao fim

O “Brexit” teve o mérito inicial de acelerar a agenda europeia, com a preocupação de impedir qualquer contágio, preservando a unidade entre os 27. O seu resultado ainda é uma incógnita. Não tanto pelas divisões europeias, até agora inexistentes, mas pela instabilidade permanente do governo de Theresa May, constantemente torpedeada a partir das suas próprias fileiras. A próxima fase, das futuras relações económicas e políticas, também não será fácil. Há sensibilidades diferentes entre os países europeus. Alguns, como Portugal ou outros países euro-atlânticos, querem uma relação o mais próxima possível. Outros, mais “continentais”, olham para o divórcio também na perspectiva da rivalidade, aproveitando a saída para reforçar o seu poder. Mas este vai continuar a ser um foco de permanente atenção nos próximos 18 meses.

Calendário

É a data da consumação do Brexit, prevista para 29 de Março de 2019, que está a determinar o calendário de decisões que os líderes têm pela frente. Os presidentes da Comissão e do Conselho Europeu querem pôr em marcha as grandes reformas no dia 30 de Março, numa cimeira informal prevista para a Roménia. Já preparam as respectivas agendas sobre o que é preciso fazer até lá. Juncker apresentou a sua no discurso do estado da União, a 13 de Setembro, uma espécie de “sexto cenário” depois do debate sobre o Livro Branco da Comissão, apresentado em Março, com cinco cenários possíveis para o futuro. Tusk resolveu mover as suas peças, logo depois da cimeira informal de Talin, no final de Setembro. A rivalidade entre ambos é cordial.

Tusk apresentou a sua Agenda dos Líderes no Conselho Europeu de 19 e 20 de Outubro, com os grandes temas e os respectivos calendários (haverá, pelo menos, 11 cimeiras) para os próximos 18 meses. Juncker defendeu que a Europa tem de avançar unida em todos os domínios, incluindo no euro. Utopia? Não. Apenas uma forma de sublinhar a preocupação, que Tusk partilha, com o cenário das várias velocidades, que ambos vêem como uma potencial ameaça à unidade e à coesão da Europa. É uma espécie de quadratura do círculo que os líderes terão de resolver. A Europa não pode ficar parada num mundo em crescente turbulência, limitando-se a ficar à espera do mais renitente ou do mais atrasado. Mas, por outro lado, se quer pesar no mundo o suficiente para defender os seus interesses, precisa da dimensão que lhe dão todos os seus membros. Emmanuel Macron é o primeiro paladino das várias velocidades, argumentando que elas já existem no euro ou em Schengen. O seu discurso da Sorbonne, cheio de ambição e de energia, acabou por sobrepor-se a outras iniciativas. Juncker e Tusk sabem disso. Muitas das propostas contidas na “Agenda dos Líderes” inspiram-se nesse discurso. A Alemanha ainda faz contas.

Defesa

Se há uma área absolutamente incontornável que une Paris e Berlim, ela é a segurança e defesa, que finalmente os alemães levam a sério e que a saída do Reino Unido ou o isolacionismo de Trump sublinham a traço grosso. Há um ano (ainda com Hollande), os dois governos apresentaram uma proposta para melhorar as capacidades militares da Europa e a sua preparação para agir em conjunto nas crises internacionais. Partiu de um debate sobre a “autonomia estratégica” da Europa. Passa pela criação de uma “cooperação estruturada permanente” para a área da segurança e defesa (PESCO), prevista no Tratado de Lisboa. Já teve a adesão da Espanha e da Itália. Não pode transformar-se numa coutada dos grandes. Discute-se agora o número de países com que deve contar no início (15 ou 20). Não dispensará a NATO. Os europeus já perceberam há muito que, em matéria de defesa colectiva, a NATO continuará a ser fundamental, mesmo que tenham de pagar mais por ela. Os grandes querem também uma cooperação mais estreita nas indústrias de defesa, para o qual a Comissão já criou um fundo destinado à investigação.

O euro

A conclusão da reforma da zona euro também está contemplada nas duas agendas de Tusk e de Juncker, disputando a prioridade dada á defesa. Para o governo português (e para alguns dos seus parceiros europeus do Sul), ela é vital para a coesão do euro indispensável para a convergência económica. Para a Alemanha (e os seus companheiros ricos do Norte), a crise do euro está resolvida. De premeio está apenas Macron, disposto a lutar por uma maioria partilha de soberania mas também de risco entre os países da zona euro. O maior quebra-cabeças está na proposta de um orçamento próprio da zona euro, destinado a ajudar ao financiamento das reformas e a dissuadir choques assimétricos. A barreira de Berlim continua a parecer inexpugnável. Merkel ainda está a negociar um governo de coligação a três, no qual os liberais nem querem ouvir falar de maior partilha de risco à custa dos contribuintes alemães. É o mesmo raciocínio que impede a conclusão da União Bancária, que toda a gente considera fundamental para a estabilização do sistema financeiro, cujo terceiro pilar (garantia comum dos depósitos) a Alemanha não aceita.

Fronteiras e migrações

Restabelecer a normalidade do espaço Schengen também é prioritário depois da crise dos refugiados, que serviu de pretexto para erguer de novo fronteiras nacionais, que agora ninguém quer baixar. Um entendimento para distribuir o peso dos refugiados por cada país continua a não existir. A harmonização das leis do asilo continua à espera. A decisão de investir nos países de origem é de longo prazo. O financiamento de centros de acolhimento nos países de origem ou de passagem está em cima da mesa. A força dos partidos xenófobos faz recuar os governos. O problema não desaparecerá.

Há outros dossiers relevantes, como o início das negociações para o próximo orçamento plurianual pós-2020, que não será fácil. É preciso encontrar um equilíbrio entre as políticas de coesão e o financiamento das novas responsabilidades europeias, a começar pela segurança e defesa. A política comercial, da competência exclusiva da União Europeia, vai causar atritos entre os que defendem a aceleração das negociações com países terceiros, aproveitando o proteccionismo de Trump, e os que se inclinam para um “proteccionismo europeu”. 

Até agora, a política europeia de Portugal assentou quase sempre num sólido entendimento estratégico entre PS e PSD. António Costa tratou de retirar a Europa dos acordos com o PCP e o Bloco. Esse entendimento continua a ser fundamental. 

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