Quando o coro da Justiça desafina

Presidente do Supremo exigiu alteração das regras que impedem certos processos-crime de subir ao Supremo. Na tomada de posse do novo presidente da Relação do Porto insistiu-se na necessidade de as decisões serem partilhadas.

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Manuel Roberto

As vozes estavam bem alinhadas. Ecoava melodia no salão nobre do Tribunal da Relação do Porto, onde se assistiria minutos mais tarde à posse do novo presidente daquela instância superior. Mas não se pode dizer propriamente que a actuação tenha sido irrepreensível. Isto porque a determinada altura o coro desafinou. Uma falha repetida ao longo do curto reportório. Nada que surpreendesse a maioria dos presentes. Afinal falamos da interpretação do Grupo Coral da Justiça, um grupo amador que canta por carolice.

O erro não tirou, esta quinta-feira, a graça que o grupo - um coro composto por juízes, procuradores e funcionários dos tribunais – deu a uma cerimónia repleta de togas e becas pretas, as vestes que simbolizam a solenidade da Justiça.

Depois de dar posse ao novo responsável da Relação do Porto, o presidente do Supremo, Henriques Gaspar, tomou a palavra. Sem desafinar. Num tom sereno e cauteloso o presidente do Supremo falou sobre a polémica que tem agastado o sector desde que, no passado fim-de-semana, foi tornado público um acórdão de dois juízes da Relação do Porto, que desculpabilizaram a agressão de dois homens a uma mulher pelo facto dela ter mantido, com um deles, uma relação amorosa fora do casamento.

"Crenças pessoais"

Num discurso que demorou pouco mais de 20 minutos, Henriques Gaspar falou abertamente da polémica, ressalvando apenas que não comentaria o processo concreto. “A manifestação de crenças pessoais e de estados de alma, ou as formulações de linguagem de subjectividade excessiva, não são, com certeza, prestáveis como argumentação e não contribuem para a qualidade da jurisprudência”, afirmou.

Depois de fazer alusão aos “momentos conturbados” que se vivem na Justiça e de ter repetido que estamos num “tempo efémero”, o presidente do Supremo não teve receios e pôs o dedo na ferida. Deixando a subtileza que tantas vezes usou ao longo do discurso, partilhou “reflexões” após “três dias de violência” contra uma decisão judicial. “A intensidade e a violência das críticas não será objectivamente um serviço prestados, não às vítimas, mas a todos aqueles que sentados nas bancadas ou chorando lágrimas de crocodilo fazem o jogo da descredibilização e da perda de confiança na Justiça?”, questionou, deixando mais um recado nas entrelinhas.

Alterar as regras

O presidente do Supremo fez ainda questão de chamar a atenção para uma questão que o caso polémico pôs em evidência. Referiu-se à forma como em nome da racionalidade no acesso aos tribunais de recurso se criaram mecanismos de filtragem que deixaram as Relações como última instância. E insistiu que estas regras têm que ser alteradas.

Isto mesmo aconteceu no caso julgado primeiramente no Tribunal de Felgueiras. O Ministério Público não se conformou com as penas de prisão determinadas para os dois agressores e com o facto de estas terem sido suspensas. Mas dois juízes da Relação do Porto confirmaram a decisão do Tribunal de Felgueiras, o que cortou a possibilidade do Ministério Público recorrer neste caso, como reconheceu a Procuradoria-Geral da República numa resposta enviada ao PÚBLICO.

Isso porque duas instâncias judiciais concordaram na mesma decisão. “Nos termos da lei, desde logo por força (…) do Código de Processo Penal, a decisão agora proferida não é passível de recurso”, afirma a PGR. O Ministério Público ainda ponderou a possibilidade de recorrer para o Tribunal Constitucional, “tendo concluído não estarem verificados os pressupostos de recurso para aquele tribunal”.

Sobre esta questão, as palavras de Gaspar são duras. “Exige[-se] que seja repensado o regime dos recursos, que, há que dizer, foi profundamente modificado em 2007 (penal) e 2008 (civil) de forma silenciosa, sem estudos adequados sem análises quantitativas nem perspectivas sistémicas”, sublinhou.  

Henriques Gaspar critica o facto de o Supremo estar afastado de inúmeros processos penais que implicam “o respeito por direitos fundamentais” . O juiz sustenta igualmente que o recurso em processo civil merece uma “reflexão profunda e empenhada”. E fala até no risco de colapso do sistema de Justiça.

“O regime que (não) existe da chamada ‘revista excepcional’ tem de ser revisto com prioridade, direi urgência, para evitar o risco do colapso”, alerta o presidente do Supremo. E acrescenta: “Foi uma solução assumida como sendo de compromisso com a necessidade de racionalizar o acesso aos supremos tribunais, mas condicionada por uma complexidade inaceitável”. Aquele juiz conselheiro fala ainda em “pressões contraditórias de interesses sectoriais, que pensam sempre no particular que lhes respeite e não no essencial que é o interesse público”.

Decisões conjuntas

Também o novo presidente da Relação do Porto, Nuno Ataíde das Neves, bateu nesta tecla e numa outra: a necessidade das decisões dos tribunais superiores serem tomadas em conjunto. Ataíde das Neves, que já foi inspector-geral do Trabalho, mostrou-se perplexo com o facto de determinados casos terem obrigatoriamente de ser analisados por três juízes na primeira instância, mas poderem ser depois alterados na Relação por apenas dois magistrados. Henriques Gaspar defendeu a necessidade de se fortalecer a colegialidade e lembrou que a “legitimidade e a confiança ganham-se ou perdem-se nos ‘pequenos nadas’ de todos os dias”.

Os dois discursos, muito aplaudidos, foram proferidos perante uma plateia repleta de magistrados em que se notaram as ausências dos dois juízes que assinaram o polémico acórdão. Tanto o desembargador Neto de Moura como a colega Maria Luísa Arantes estiveram esta quinta-feira na Relação do Porto, mas durante a manhã. Longe dos holofotes da comunicação social e dos restantes pares.  

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