A solidariedade deu lugar ao protesto dos portugueses

O que vem depois de ondas de solidariedade apagadas por mais um cenário de inferno e mais de 40 mortes? A revolta. Por todo o país, portugueses querem sair à rua.

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ADRIANO MIRANDA

Grupos de cidadãos em vários pontos do país estão a organizar mobilizações e vigílias de cidadãos em protesto contra a gestão do combate aos incêndios que continuam a destruir Portugal e que só nos últimos quatro meses já provocaram 105 vítimas mortais e centenas de feridos. Em comum une-os o facto de não terem sido afectados directamente pelos incêndios, nem conhecerem ninguém que tenha sido. Mas essa é também a mensagem: mostrar que o resto do país se preocupa e está solidário com a devastação e mortes causadas pelas chamas.

Não é um movimento partidário, é um exercício de democracia no estado puro de direito dos cidadãos. É isso que nos explica Rui Maria Pêgo, quando conta como surgiu a ideia de organizar uma “manifestação silenciosa”, este sábado, no Terreiro do Paço, em Lisboa. “Vi que estava a ser organizado um encontro no Porto e achei que devíamos reproduzir o mesmo em Lisboa. Que devíamos estender a iniciativa ao máximo em vários pontos do país, como de resto já percebi que está a acontecer”, contextualiza o também actor, em conversa com o PÚBLICO.

O apresentador sublinha não pretender centrar o evento em quem o organiza, mas sim transportar a sua notoriedade para a colocar “ao serviço do que tem de ser feito”. A crescente adesão ao evento (às 17h de terça-feira contava no Facebook com a confirmação de 2400 pessoas), inicialmente marcado para a Praça Luís de Camões, na zona do Chiado, em Lisboa, deverá obrigar à sua transferência para o Terreiro do Paço, antecipou ao PÚBLICO.

“Queremos homenagear as vítimas. É importante que demonstremos uma posição, uma demonstração pública pacífica”, vinca o locutor. “É preciso desconstruir a imagem de que quem está aqui, em Lisboa, não se preocupa e não sofre com o resto do país”, realça Rui Maria Pêgo.

O mesmo sente Jorge Santos, o organizador de uma mobilização que decorre nesta terça-feira, à porta do Palácio de Belém. A ideia começou “de uma forma espontânea”, resultado “de uma revolta enorme" na segunda-feira, "depois de assistir ao discurso do primeiro-ministro”. Jorge esperava ouvir “palavras mais reconfortantes, algo mais inspirador": "E fomos brindados com palavras frias. Foi isso que me repugnou e num impulso genuíno criei o evento". Depois de o partilhar com amigos viu que a iniciativa foi crescendo e que não era o único encontro marcado para esta terça-feira.

A escolha da data não é aleatória. “No sábado há decisões a ser tomadas no Conselho de Ministros sobre o que vai ser o futuro da floresta e do combate aos incêndios. Nessa altura estaremos juntos, para mostrar que nos importamos”, explica Rui Maria Pêgo. Tudo isto, “sem procurar qualquer culpabilização”, frisando que não é esse o propósito do encontro. “É uma lógica de cidadania, apenas, não pretende ter qualquer cor política”, sublinha. “É uma iniciativa contra a inoperância de todos os governos. Não de um governo em particular”, justifica. Daí a localização destes protestos se afastar da Assembleia da República, “para não ter uma conotação política”, acrescenta Jorge.

“Trata-se de uma manifestação solene. Um momento de homenagem. Perdemos mais de 100 pessoas. A dimensão do desastre é absurda”, continua Rui, recordando a proximidade e a repetição do cenário de Pedrógão Grande. “O país já sofreu de mais com isto”, conclui o apresentador, que nos últimos dias se tem multiplicado em publicações sobre os incêndios na sua página de Facebook.

Além disso, desta vez, o sentimento é diferente de Pedrógão, notam os organizadores. “É um sentimento muito mais genuíno, muito mais profundo”, considera Jorge. Mais do que solidariedade, há revolta quatro meses depois de terem morrido 64 pessoas e de ter sido conhecido o relatório de técnicos independentes que analisaram o incêndio em Pedrógão Grande, concluindo que várias falhas contribuíram para a dimensão do desastre.

“Queremos marcar presença para dar importância à vida humana, mas sobretudo também impedir que coisas destas possam acontecer e não cair na retórica de que outros dias negros virão”, vinca Jorge Santos. “Não era uma inevitabilidade. Não podemos aceitar que morrem 100 pessoas e que o primeiro-ministro vem dizer que era uma inevitabilidade”, considera. “Acho que perderam o rumo. Perderam o Norte.”

“Comecei a perceber que os números começaram a ser mais elevados e a crescer”, conta Paulo Gorjão, um dos organizadores do encontro desta terça-feira às portas da residência oficial de Marcelo Rebelo de Sousa. Com eles crescia a revolta. Decidiu marcar o que considera uma “vigília” para a porta da Presidência da República, em Belém.

“Há uma profunda insatisfação com a resposta que o Governo está a dar nesta matéria”, considera, num tom mais crítico do que os outros organizadores. “Na saúde posso ir ao Serviço Nacional de Saúde ou optar por um seguro de saúde privado. O mesmo na Educação, se tiver meios para isso”, exemplifica. “A questão dos incêndios é uma questão de soberania. Não há opção entre protecção civil pública ou protecção privada. É uma opção do Governo e o Governo está a falhar numa área de operação.”

Paulo Gorjão não poupa palavras à acção do Governo e do Presidente da República. “Já chega de beijos, abraços e selfies. O Presidente da República é a válvula de escape do sistema e tem de actuar em conformidade com isso. Tem de dar um murro na mesa e chamar à atenção do Governo.”

“Temos há muito uma ministra da Administração Interna e um secretário de Estado que deviam ser exonerados porque não existem do ponto de vista político. São pessoas desautorizadas e desacreditadas que vão fazer a reforma do sistema”, considera o organizador do evento.

Para além de Lisboa, as iniciativas sobre os incêndios realizam-se em várias cidades do país. Na cidade de Braga vai decorrer na sexta-feira, a partir das 18h, a acção "Incêndios, até quando? Concentração em Braga".

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