O dia em que os círculos desapareceram do mundo

Na segunda edição da revista infantil Triciclo, somos transportados para um acontecimento estranho e inexplicável. Acompanhámos a construção deste segundo número, desde a impressão ao lançamento.

O dia em que os círculos desapareceram do mundo Sibila Lind

Nas ruas, a confusão instalou-se. Os carros mal conseguiam andar com as rodas triangulares e alguns sinais de trânsito não eram perceptíveis à primeira vista. Nos restaurantes, era impossível comer, pois mal se conseguia pegar nos copos e quando as colheres chegavam à boca já a sopa tinha escorregado pelo caminho. A orquestra metropolitana teve de improvisar novos instrumentos, para se preparar para o grande concerto da  semana seguinte, em que o triângulo foi o protagonista. Perante este fenómeno extraordinário, as autoridades decidiram dar início a uma missão espacial: enviar o homem numa viagem até ao espaço para observar o resto dos planetas e talvez pedir ajuda a quem por lá estivesse. Mas, quando os astronautas chegaram ao espaço, parecia que estavam no meio de um jogo de Tetris. Marte tinha a forma de um “L”, Urano era um triângulo, Neptuno um hexágono tosco e o anel tão bonito de Saturno era apenas um quadrado, em volta de outro.

O mundo estava de pernas para o ar – e o próprio universo também. Um mundo imaginado por três ilustradores que um dia sonharam criar uma revista infantil com liberdade total, das técnicas utilizadas às histórias. Este mundo sem círculos foi o tema da segunda edição da revista Triciclo, lançada a 14 de Outubro na livraria Ler Devagar, na Lx Factory em Alcântara.

Ana Braga, Inês Machado e Tiago Guerreiro conheceram-se na escola de artes Ar.co, em Lisboa. Descobriram rapidamente que partilhavam o interesse pela ilustração e, sobretudo, uma vontade de experimentar técnicas e abordagens diferentes nesta área. Foi assim que idealizaram uma revista, que no início deste ano teve "rodas” para andar: a Triciclo. Para produzir o primeiro número, que aponta a sua mira para um público infantil mas que não exclui leitores mais velhos, juntaram cerca de 750 euros. Tiveram em conta as particularidades do projecto, encadernado manualmente e impresso de uma forma não convencional através de risografia – cada cor é impressa à vez através de uma impressora e, ao sobrepor as cores, acaba por se desenvolver uma textura particular.

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Em Janeiro, ainda a Triciclo se preparava para aparecer pela primeira vez ao público e já estava esgotada. Foi preciso imprimir mais 250 exemplares para o dia do lançamento, a 4 de Fevereiro. “Tínhamos impresso 80 revistas que foram logo vendidas”, conta Tiago Guerreiro, ilustrador de 34 anos e um dos fundadores da revista. “Havia muita procura. Não estávamos à espera do impacto que a Triciclo iria ter." O primeiro número da revista aborda a questão do tempo e ilustra um dia na vida de uma criança. São 24 páginas, cada uma correspondente a uma hora do dia. Um dos passatempos é descobrir o número das páginas, através das horas marcadas nos relógios. “Foi fácil escolher o nome da personagem”, ri Ana Braga, ilustradora de 33 anos. “Cada um fez os seus desenhos, mas quando mostrei os meus vimos que o rapaz se parecia muito o meu marido, que se chama André.”  Após o sucesso do primeiro número, os três ilustradores decidiram lançar uma Triciclo especial de Verão, onde o André recebe uma visita dos primos franceses. A Triciclo surge como uma revista de passatempos, mas aliada a uma narrativa, para que os mais novos possam também apreciar a revista. “Há crianças que ainda não sabem ler e que perguntam aos pais pela história da personagem”, diz Inês Machado, de 24 anos. “Então decidimos manter essa lógica."

Por terra I Ana Braga
Carro verde Tiago Guerreiro
Canoagem Inês Machado
Por terra III Ana Braga
Treno´s Tiago Guerreiro
Cavaleiro Inês Machado
Fotogaleria
Por terra I Ana Braga

Os imprevistos do analógico

Numa das ruas estreitas e escondidas do Bairro Alto, o barulho de uma impressora mistura-se com os poucos sons que se ouvem no exterior. Quando se entra no espaço, de um lado temos uma editora de partituras, do outro uma oficina de impressão, a Stolen Prints. É aí que vemos nascer o segundo número da revista, onde, com os desenhos finalizados e as cores escolhidas, começa a impressão em risografia. As folhas entram em branco para a impressora e vão saindo com uma parte da ilustração a laranja. Para a segunda impressão, onde é feita a sobreposição da primeira cor com a segunda, é preciso alinhar bem as páginas, para que o desfasamento entre as linhas não seja incómodo, apenas o suficiente para lhe dar aquele registo imperfeito, próprio do analógico. Ao trabalhar com a impressão em riso é preciso ter já em mente uma tiragem limitada e saber lidar com o facto de não se poder controlar tudo. Mas, sobretudo, saber lidar com os imprevistos. Das duas vezes que visitámos a oficina, a impressora falhou. Da primeira o tambor da máquina – a peça que transfere a cor para o papel – avariou, adiando o lançamento da revista mais de um mês.

Além da revista infantil, a equipa tem desenvolvido outros projectos: um livro de artista com texto de Tiago e ilustrações de Inês em serigrafia e uma caixa de jogos em madeira desmontável. O calendário até ao final do ano também está preenchido: em Novembro vão participar numa conversa com professores da Ar.co no Encontro Internacional de Ilustração de São João da Madeira, onde vão também apresentar a Triciclo e fazer o lançamento do livro de artista, em Dezembro organizarão uma exposição de ilustração na Fabrica Features, no Chiado. “A ideia da revista é ser publicada semestralmente e ter pelo meio algumas edições especiais. Não fazemos isto pelo dinheiro, mas para criar um projecto realmente nosso, de que gostamos e onde podemos ser livres."

Na história de um mundo sem círculos, tudo acabou bem. O sol voltou a ser redondo e as nuvens ganharam as suas formas originais. Os carros voltaram a andar e as crianças a jogar à bola. Mas, de repente, já não era um mundo sem círculos mas um mundo sem quadrados. E agora? Como acabará a história?

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