Foi tudo mal feito: relatório de Pedrógão não poupa (quase) ninguém

Os técnicos não poupam o Governo, a Protecção Civil, os municípios, o SIRESP, até a presença de “autoridades” a mais no terreno. De fora ficam apenas o IPMA e a GNR. Eis o que falhou.

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Comissão independente de investigação detectou muitas falhas no combate aos incêndios Paulo Pimenta

A equipa de técnicos que analisou a tragédia de Pedrógão diz que falhou quase tudo no combate ao incêndio que tirou a vida a 64 portugueses em Julho passado. No sumário executivo, há uma frase que sintetiza tudo:

"Não houve pré-posicionamento de forças, nem análise da evolução da situação com base na informação meteorológica disponível. A partir do momento em que foi comunicado o alerta do incêndio, não houve a percepção da gravidade potencial do fogo, não se mobilizaram totalmente os meios que estavam disponíveis e os fenómenos meteorológicos extremos acabaram por conduzir o fogo, até às 3h do dia 18 de Junho, a uma situação perfeitamente incontrolável.

Ponto a ponto, estas são as muitas falhas detectadas durante estes três meses de investigação independente:

Alertas sem ouvidos: a parte do Governo

O território afectado, “pela sua orografia ondulada e continuidade florestal favorece grandes incêndios”. “Acresce que partes extensas da região não ardiam há mais de 20 anos”, o que, diz a equipa, “à partida implica maior acumulação de combustível florestal”. E esse combustível “estava disponível para arder na sua totalidade desde o final de Maio”. Assim sendo, o risco naquele dia, naquele território, era enorme: “Qualquer ignição em local com vegetação e topografia favoráveis certamente se desenvolveria rapidamente, e bastante cedo, e a sua intensidade ultrapassaria a capacidade de extinção.”

Mas os meios de prevenção não estavam disponíveis, alega o relatório. Não faltou sequer o alerta do IPMA: “As condições atmosféricas então vigentes determinaram no dia 16 de Junho um alerta especial de perigo de incêndio florestal em nível amarelo para todo o território por parte do CNOS.” É aqui que se aponta um dedo a uma não decisão do Governo: “Estava- se ainda na fase Bravo (15 de Maio a 30 de Junho) e não tinha sido tomada decisão alguma para eventualmente antecipar a fase Charlie (normalmente de 1 de Julho a 30 de Setembro). Face às condições instaladas e previstas, a avaliação que deve ser feita relativamente à prontidão das actividades de pré-supressão de incêndios é francamente negativa”, dizem os peritos. Porque “os postos de vigia para detecção de incêndios mais próximos da ocorrência de Pedrógão Grande não estavam ainda activos; não havia vigilância móvel armada nem pré-posicionamento de meios de combate em local estratégico, à excepção dos sapadores florestais”.

A conclusão é esta: “A antecipação da fase crítica do DECIF [a fase Bravo, com todos os meios de combate] poderia ter permitido a detecção mais precoce dos fogos nascentes e certamente teria tido implicações nos resultados do combate aos incêndios.”

Municípios: planos de defesa a 19%

Porém, para que as condições no terreno fossem propícias à tragédia também contribuíram os municípios, por causa das medidas de prevenção estrutural que quase não foram executadas: “A área de faixas de gestão de combustível, incluídas nos planos municipais de Defesa da Floresta Contra Incêndios, dos 11 municípios afectados pelos incêndios de Pedrógão Grande e Góis, atingem a extensão de 31.712,09 ha [hectares]. No período de 2012 a 2017, apenas foram executados cerca de 19%, de acordo com a informação cartográfica recolhida.”

Um pouco mais à frente no relatório explicam-se as consequências dessa falha: “As medidas de gestão de combustível em redor das vias de comunicação e em volta dos aglomerados populacionais não tinham sido cumpridas. A promiscuidade entre casas e árvores nestes aglomerados, por incúria ou falta de recursos económicos dos proprietários, cria situações de enorme risco junto às habitações. Nas vias de comunicação, as obrigações das entidades gestionárias e/ou concessionárias não tinham sido cumpridas de acordo com as determinações legais.”

Protecção Civil: como falhou a resposta

À Autoridade Nacional de Protecção Civil são apontados vários erros, sobretudo nas horas iniciais do ataque ao fogo. Há até uma síntese desses erros, no final do sumário executivo, em quatro pontos:

  1. “A incapacidade para debelar o fogo nascente na primeira meia hora após a eclosão, dado o tempo decorrido desde a ignição e os meios empregues em ataque inicial, que foram insuficientes para as condições do dia”;
  2. “Passado esse momento o controlo do incêndio foi-se tornando progressivamente mais difícil pelo crescimento rápido do perímetro, com a cabeça praticamente sempre acima da capacidade de extinção e projecções em número significativo. O combate ao então flanco direito do incêndio foi descurado, o que foi decisivo para a sua rápida expansão, o que se verificou após a mudança na direcção do vento registada às 18h (...)”;
  3. “Eram diminutas as perspectivas de vir a dominar rapidamente o incêndio, informadas pelas suas características, pela leitura das condições em que evoluía e pelas previsões meteorológicas existentes. Assim, as necessárias medidas de protecção civil (disposições relativas à circulação na rede viária, acompanhamento da população rural, preparação de evacuações) deveriam ter sido equacionadas logo às 16h-17h e cumpridas a partir das 18h”; 
  4. “As deficiências no comando e gestão da operação de socorro foram agravadas pelas dificuldades de comunicação (...). Mas as consequências catastróficas do incêndio não são alheias às opções tácticas e estratégicas que foram tomadas.”

Mas pelo meio fica um ponto importante também sobre a falha de alocação dos meios aéreos. Explica o relatório que, “quando tecnicamente se passou à fase de ataque ampliado, dever-se-ia ter alterado o comportamento do combate. Contudo, entre as 16h e as 18h, numa fase crítica do incêndio, não houve intervenção de meios aéreos. Este período abrange já um primeiro momento de ataque ampliado sem a presença de qualquer meio aéreo”. Esses meios adicionais “chegam já de noite e a área ardida havia já superado os 10.000 ha [hectares]”, concretiza.

Protecção Civil: a responsabilidade no comando

Depois, na fase em que o incêndio ficou descontrolado — já com condições atmosféricas únicas, reconhecem — são também muitas as falhas da Protecção Civil.

O apontar da primeira falha encerra até uma crítica às autoridades que foram para o local e à comunicação social: “O posto de comando operacional (PCO) conheceu, por razões operacionais, três localizações diferentes. A instalação em Pedrógão, após ter saído de Escalos Fundeiros, confrontou-se com dificuldades irremediáveis no acesso às redes de comunicações. O PCO voltou a emigrar, já no dia 19, para Avelar (Ansião). O seu funcionamento, para além dos aspectos técnicos referidos, foi nos primeiros dias perturbado pela presença excessiva de autoridades e elementos de órgãos da comunicação social. Situação que se deveria evitar, pois a função de comando exige total concentração.”

Outro problema anotado é o da falta de experiência de quem comandava: “O desempenho do comando das operações foi, nos períodos seguintes, assegurado por elementos da ANPC, atribuído a operacionais com experiência e alternando com outros que, pela primeira vez, foram confrontados com situações extremas de emergência.” Umas páginas antes, os peritos apontam o dedo à falta de qualificação dos operacionais da Protecção Civil, com uma alfinetada ao Governo — e às nomeações por ele feitas: “A instabilidade ocasional provocada pelos ciclos políticos atribuem a esta função desempenhos fortuitos, o que pode gerar (tem gerado), em alguns casos, situações com graves consequências.”

SIRESP falhou, sim (mas não é factor decisivo)

Houve falhas da rede de emergência, confirma a equipa de técnicos independentes. E aponta o motivo principal: “Nestes dois mega-incêndios, as falhas de comunicações do SIRESP foram sendo colmatadas transitoriamente com o recurso às redes móveis públicas e à ROB. Estas redes permitiram superar pontualmente as ineficiências da rede SIRESP funcionando como redes redundantes. A rede SIRESP está baseada em tecnologia ultrapassada (quando comparada com as tecnologias 3G e 4G). Representou, quando foi introduzida, um enorme avanço em relação à fragmentação passada. Mas não acompanhou a evolução vertiginosa que as tecnologias de comunicação sofreram nos últimos anos.”

Na parte das recomendações, os peritos pedem que se estude a sua actualização. Mas desenvolvem um pouco mais: “A rede SIRESP foi objecto de críticas relativas à sua eficácia. A destruição pelo fogo de algumas das suas ligações e a inexistência de soluções de redundância com a mesma qualidade colocaram dúvidas relativas à solidez da rede. E se a redundância constitui um problema que pode ser solucionado através da possibilidade de ligações via satélite (apenas para determinadas zonas e períodos de tempo), o potencial da rede SIRESP não foi totalmente explorado (parametrizações para concentrar capacidades ou maior densidade de estações móveis).”

Os factores naturais

O argumento mais vezes usado pelo executivo como crucial para a tragédia — e as mortes — é referido também pelos peritos. Mas sem nunca desvalorizar todos os erros humanos que potenciaram a catástrofe. O que se passou, em síntese, foi isto: 

O incêndio de Pedrógão Grande é muito provavelmente aquele que, em Portugal, libertou mais energia e o fez mais rapidamente (com um máximo de 4459 ha [hectares] ardidos numa só hora), exibindo fenómenos extremos de vorticidade e de projecção de material incandescente a curta e a longa distância (...). É um caso especial de superação do potencial previsível de propagação ao passar por duas alterações de comportamento, a primeira das quais possível (alteração de direcção e evolução mais rápida) e previsível, havendo acompanhamento meteorológico; e a segunda muito improvável (colapso da coluna de convecção e downburst). O facto de tal ter sucedido antes do início do Verão e à hora do dia em que normalmente diminui a severidade das condições meteorológicas presumivelmente afectou a percepção de risco por parte dos operacionais.

É sobretudo no período entre as 18h e as 21h que o fogo se “expande de forma alargada e com enorme intensidade, reduzindo as possibilidades de circulação. Os bombeiros presentes no terreno, com as mudanças de vento, ficam colocados na cauda do fogo e com enorme dificuldade de intervir nos respectivos flancos. Nestas três horas o fogo consome quase 8000 ha [hectares], destruindo quase 60% desta área só no período das 20h às 21h. A situação de 'muito fogo', as alterações de orientação dos ventos (e do fogo) e a escassez de meios dificultam a circulação dos bombeiros e, por maioria de razão, das pessoas”, acrescenta o relatório.

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