O direito a ver reconhecido o pai prescreve? Lei diz que sim, tribunais dividem-se

Um desempregado de Vila Real reivindicou no tribunal europeu o direito a obrigar o homem que julga ser seu pai a perfilhá-lo. Mas a lei portuguesa diz que o pedido caduca aos 28 anos. E a pretensão foi-lhe negada

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Mário Mondim alega que nunca teve recursos para reivindicar a sua perfilhação nos tribunais Paulo Pimenta
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“Nunca pude chamar pai a ninguém”. Mário Mondim Correia, um desempregado de 48 anos, cresceu numa aldeia pobre de Vila Real, com meio mundo a apontar-lhe o nome do pai. “Quando ia com a minha mãe na rua ouvia sempre ‘Olha o filho do doutor’”. O médico em causa, um dentista detentor de um vasto património, negou sempre que fosse pai daquele rapaz, criado por uma surda-muda que um dia lhe batera à porta do consultório para um tratamento dentário. Em 2012, Mário decidiu usar algumas poupanças para reivindicar em tribunal o direito a ver reconhecida a sua origem biológica: os tribunais, porém, negaram-lhe essa possibilidade, numa decisão cuja legalidade foi esta semana corroborada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH). Motivo: o artigo 1817º do Código Civil que prevê que o direito de uma pessoa a investigar quem são os progenitores caduca dez anos depois de atingida a maioridade.

Há anos que os diferentes tribunais portugueses emitem acórdãos contraditórios sobre a constitucionalidade do artigo 1817º do Código Civil. O articulado legal até prevê excepções ao admitir que a acção possa ser interposta até três anos após o pretenso filho ter tido conhecimento de “factos ou circunstâncias” que justifiquem a investigação. Mas descarta casos como o de Mário Mondim Correia, cuja pobreza, misturada com o receio de alterar uma ordem social há muito estabelecida, o dissuadiu de avançar antes contra um homem que, até pelas semelhanças físicas óbvias, todos apontavam como sendo seu pai. “Não tinha dinheiro para tratar dessas coisas. A minha mãe era pobre e deficiente e a família dela pobre era: não havia recursos para advogados e tribunais. Agora, com as coisas mais equilibradas, a minha mulher é que me animou, até por causa da nossa filha e do direito dela a ter um avô”. 

Mário fala num fio de voz, tímido e nervoso. As mãos ziguezagueiam no colo, enquanto percorre os pontos cardeais da infância que o trouxe até esta sala: mesa de refeições, sofás e lareira, uma reprodução barata do “A Última Ceia”, tudo em pequenino, tudo para o atravancado. “Faltam-nos três anos para acabar de pagar a casa [ao banco] ”, intervém a mulher, parada à porta da sala onde não cabem todos. A filha de ambos, Ana Filipa, já dobrou os 23 anos e foi a única capaz de reunir a coragem suficiente para interpelar directamente o pretenso avô. “Perguntei-lhe se me conhecia e ele disse que não. Perguntei-lhe se ele se lembrava da surda-muda da aldeia e ele disse ‘Isso são influências da tua família. Esquece e segue com a tua vida’”. O pai elogia-lhe a afoiteza. “A única vez que nos cruzámos ia com a minha mãe na rua. Ele reconheceu-a e disse ‘Olá, estás boa?’ eu é que tive vergonha e puxei-a para virmos embora”.

Não é preciso nenhum tratado de psicologia para adivinhar os estragos que há-de ter feito a Mário o facto de ter crescido na convicção de que o pai, a uns quilómetros de distância, se recusava perfilhá-lo. “Mesmo as pessoas que não eram da aldeia, viam a minha mãe e punham-se logo ‘Coitada, o ‘doutor’ arranjou-lhe um filho e nunca a amparou, nunca lhe deu nada’”. Na escola, para calar interrogatórios constrangedores, Mário habituou-se a escrever o nome do tio nas linhas destinadas ao pai nos formulários do costume.

De acordo com as alegações constantes no processo, em Novembro de 2012, pouco depois de ter sido intimado a colaborar na investigação de paternidade intentada por Mário Mondim Correia, o dentista em causa divorciou-se, embora tivesse continuado a viver com a mulher, e alienou vários prédios do seu património imobiliário, entre doações, partilhas e vendas a familiares. Quando a respectiva acção deu entrada no Tribunal Judicial de Vila Real, Mário obteve como resposta um processo-crime por denúncia caluniosa intentado pelo pretenso pai. “A advogada que então estava com o caso”, explica Liliana do Fundo, a actual representante legal de Mário Mondim, “lembrava, na petição inicial, que o médico era uma pessoa economicamente poderosa na cidade e capaz de, com a sua influência social junto da população, controlar a prova, como o terá feito quando a primeira acção de reconhecimento da paternidade foi posta, logo a seguir ao nascimento, numa altura em que a prova era testemunhal e não havia a possibilidade de recurso aos testes de ADN”.

Mário foi absolvido neste processo-crime. Quanto à acção de investigação de paternidade, andou anos a escalar etapas: no tribunal de Vila Real, os juízes consideraram que o direito de Mário Mondim a ver investigada a sua origem biológica tinha caducado. O caso subiu depois para o Tribunal da Relação, que confirmou a declaração de caducidade da primeira instância, e daí para o Supremo. Aqui, os juízes consideraram que a limitação temporal imposta pelo artigo 1817º era inconstitucional, nomeadamente porque colidia com o direito de cada um a ver determinada a sua verdade biológica e a sua identidade. Em 2014, porém, o Tribunal Constitucional, para onde o pretenso pai recorrera, teve um entendimento contrário. E, numa decisão sumária, alterou a sentença do Supremo remetendo para um acórdão anterior, o 401/2011. Neste acórdão, os juízes tinham apontado a constitucionalidade do limite temporal, embora a decisão tivesse sido muito renhida, com sete votos a favor e seis contra. Ainda assim, vencia no fundo o argumento segundo o qual a caducidade visava impedir um prolongamento injustificado de uma situação com óbvias repercussões na estabilidade jurídica e familiar dos pretensos pais, bem como travar uma eventual “caça à herança”.

Direito à verdade versus estabilidade jurídica

Inconformada, Liliana do Fundo lançou-se num derradeiro recurso ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), invocando, entre outras razões, que o tampão temporal imposto pela lei portuguesa viola o artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nomeadamente quando este estabelece que todos têm direito ao respeito pela vida privada e familiar, não podendo haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito.

Na decisão, com data de 3 de Outubro, o TEDH alegou não ter vislumbrado razões válidas para que Mário Mondim tivesse esperado 16 anos após ter atingido a maioridade para reivindicar o direito a ver a sua paternidade legalmente estabelecida. E concluiu que a lei portuguesa não conflitua, apenas circunscreve temporalmente, o direito de cada um à sua identidade. “Esgotaram-se as possibilidades”, desilude-se Liliana do Fundo, para quem “as pessoas deviam ser livres de a todo o tempo investigarem a sua origem biológica”. “O argumento da estabilidade jurídica não colhe porque cada um tem que a conquistar para si mesmo, ou seja, se alguém mantém relações sexuais com alguém tem de estar preparado para assumir as consequências desse acto”, argumenta, dizendo não compreender que a lei portuguesa subjugue a esta estabilidade o direito à verdade biológica.

A não ser que se faça jurisprudência ou que a lei se altere, Mário Mondim continuará a responder como há dias quando, ao renovar o Cartão de Cidadão, lhe apontaram o vazio no espaço destinado ao nome do pai: “Não existe. Nunca me perfilhou.” 

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