O Douro tem de mudar

Chegou o tempo de resolver os graves desequilíbrios e distorções na Região Demarcada do Douro e de estabelecer um sistema renovado de regulamentação, adequado ao século XXI, e mais justo para todos os atores desta nobre região, Património da Humanidade.

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Fábio Augusto

O Douro é uma das mais magníficas regiões vinícolas do Mundo, há séculos conhecida pelos seus Vinhos do Porto. Porém, a partir dos anos 90 do século passado, todos os vinhos generosos do mundo, sem exceção, têm vindo a sofrer reduções significativas nas suas vendas, em resultado de mudanças nos hábitos dos consumidores e do enorme incremento de oferta de produtos alternativos.

Os produtores de Vinho do Porto têm sabido contrariar esta tendência melhor do que em qualquer outra área de produção de vinhos generosos, conseguindo parcialmente compensar as reduções em volume com aumentos em valor nas vendas de qualidades superiores, fruto de uma permanente inovação e de excelente marketing.

Os volumes de venda totais de Vinho do Porto em 2016 situaram-se 19% abaixo das vendas registadas em 2000. Utilizando as tendências dos últimos 16 anos, é previsível que em 2025 as vendas sejam de, aproximadamente, 69 milhões de litros, 28% abaixo dos 96 milhões de litros vendidos em 2000. Esta redução terá naturalmente implicações muito graves para a Região Demarcada do Douro (RDD) e para todos os que aí trabalham.

Entretanto, o crescimento dos vinhos DOC Douro tem sido notável e as vendas em 2016 atingiram 35 milhões de litros. Este desempenho tem felizmente criado um novo pilar económico para a RDD, permitindo aos lavradores a comercialização dos seus vinhos.

O crescimento do turismo e os novos acessos rodoviários estão também a ajudar a economia regional, dando oportunidade para visitas, provas e vendas diretas, tal como já existe noutras regiões do mundo.

Contudo, existem atualmente problemas graves no Douro e chegou a altura de os resolver. Desde logo, o mais importante destes é a falta de rentabilidade económica dos lavradores do Douro, o que advém de vários fatores.

Área excessiva de vinha

Existem 43.479 hectares de vinha na RDD, uma das maiores áreas vitícolas na Europa, a produzir anualmente, em média, 142,9 milhões de litros de vinho. No entanto, as vendas anuais (Vinho do Porto, DOC Douro e Moscatel) são somente de 115,1 milhões de litros (excluindo a aguardente incorporada na produção de Vinho do Porto).

Uma região que produz sistematicamente 28 milhões de litros de excedentes anuais (19% da produção total da RDD) não pode estar bem, e é o lavrador quem mais sofre.

Este ano, após meses de seca extrema, o volume de produção na região situar-se-á provavelmente muito perto do volume de vendas previsto para o corrente ano. Este é, todavia, um ano totalmente anormal.

Mesmo com as vendas de DOC Douro a manterem um forte nível de crescimento, em 2025 continuará ainda assim a verificar-se um elevado excedente, nomeadamente devido à previsível redução dos volumes de Vinho do Porto vendidos.

Os lavradores

No Douro existem atualmente 21.426 lavradores. Contudo, 9.141 (43%) destes detêm menos de meio hectare de vinha. E 19.721 (92%) lavradores detêm menos de cinco hectares. É extremamente difícil manter vinhas de tão pequena dimensão num formato economicamente viável, em especial quando comparadas com qualquer outra região vinhateira do mundo.

O número de lavradores na RDD está a diminuir drasticamente e a respetiva idade média está a subir, com mais de 33% tendo mais de 65 anos. Entre 2001 e 2011 a população do Douro entre os 15-24 anos reduziu-se em 32% e a população total reduziu-se em 7%. Os filhos dos lavradores, na esmagadora maioria, estão a escolher outros caminhos e outras oportunidades, ou nas grandes cidades ou, até, no estrangeiro.

A falta de mão-de-obra na RDD foi absolutamente notória nesta última vindima e esta situação irá agravar-se nos próximos anos. Nenhuma região no mundo com a dimensão da Região Demarcada do Douro é totalmente vindimada à mão. As uvas vão ficar nas vinhas se não houver muitas mudanças.

Muito baixo rendimento

As terras durienses produzem vinhos excelentes, mas produzem poucas uvas. No Chile, Austrália e os Estados Unidos a produção de uvas para vinho situa-se entre 13.300/17.000 kg por hectare. Em França e Itália a produção média é entre 8.000/10.200 kg por hectare. No Douro, porém, a produção média é de somente 4.300 kg por hectare. É óbvio que o Douro só tem futuro se vender vinhos a preços muito superiores à média, tanto ao nível dos vinhos do Porto como DOC Douro tintos e brancos.

O sistema e a regulamentação atual

A produção de Vinho do Porto é anualmente pré-estabelecida no quadro de um sistema conhecido por benefício. Este sistema, similar ao que está em vigor em outras regiões vitícolas da Europa, limita a produtividade máxima por hectare. O resultado é que os preços pagos pelas uvas com direito a serem beneficiadas são elevados, situando-se entre 1,20 euros e 1,40 euros por kg de uvas, o que as coloca entre as uvas mais caras da Europa.

Porém, as uvas para DOC Douro, produzidas na RDD, têm uma limitação muito reduzida ou, na prática, nula. E estas uvas são transacionadas a preços de mercado livre. O preço tem variado entre 0,25 euros e 0,40 euros por quilo, nos últimos anos. Há pequeníssimas quantidades vendidas a preços superiores a estes.

Visto que o custo médio de produção para uma vinha no Douro (excluindo o valor de investimento na plantação) se situa entre 0,70 e 0,90 euros por quilo de uvas, é um facto incontornável que o lavrador vende as uvas para o Vinho do Porto obtendo uma margem, mas vende as uvas para DOC Douro perdendo substancialmente.

Daqui a oito anos, utilizando uma previsão baseada nas tendências dos últimos dez anos, é possível que o Douro venha a produzir mais uvas para DOC Douro do que para Vinho do Porto, o que só fará a situação piorar.

O lavrador com benefício para Vinho do Porto tem a venda das suas uvas garantida, visto que a quantidade total autorizada está alinhada com a procura. Por outro lado, o preço das uvas para DOC Douro depende do mercado livre, e obviamente o lavrador tentará obter o melhor preço possível para estas. Daqui decorre uma das piores distorções do sistema atual - a existência um forte incentivo para encaminhar as melhores uvas para a produção de DOC Douro, como via para se, potencialmente, obter um pequeno aumento do preço.

Considerando o diferencial entre os preços pagos pelas uvas destinadas a Vinho do Porto e o DOC Douro, a situação não podia ser mais absurda.

Ainda mais caricato é o facto de que em cada vindima se pode ver uvas do Douro a serem transportadas para fora da região. Isto advém do facto de as uvas no Douro serem mais baratas do que em outras regiões limítrofes, apesar de terem custos de produção substancialmente superiores e rendimentos bem mais baixos. O sistema está totalmente distorcido.

Uma estimativa global do rendimento anual dos lavradores do Douro indica que em 2016, para os 82 milhões de quilos de uvas usados para produzir Vinho do Porto, os lavradores receberam aproximadamente 107 milhões de euros, mas para os 48 milhões de quilos de uvas usados para produzir DOC Douro receberam aproximadamente 16 milhões de euros. Ou seja, 63% da produção da região (Vinho do Porto) gerou 87% do rendimento, e 37% da produção (DOC Douro) gerou só 13% do rendimento.

Não pode haver dúvidas sobre a distorção provocada pela situação atual que é consequência inevitável de um sistema com dois pesos e duas medidas para uma mesma vinha; uma parte com limitações rigorosas (Vinho do Porto), e outra, com mercado livre (DOC Douro).

Uma conhecida empresa de consultoria, a Quaternaire, identifica bem o problema no seu relatório “Atualização do Diagnóstico Estratégico dos vinhos com DOC Douro, Vinho do Porto e IG Duriense da Região Demarcada do Douro” de 26 de outubro de 2015: “a insustentabilidade dos preços pagos à produção para uvas sem ‘benefício’”

A venda do benefício

A venda das licenças para produzir Vinho do Porto, o benefício, sem uvas, continua, infelizmente, a ser uma prática corrente na RDD. Alguns vendem o benefício sem uvas, porque a sua produção é tão pequena que acaba por ser mais simples vender a licença. Outros vendem quase a totalidade do seu benefício, porque estão dedicados a outros projetos e a venda da tal licença sem as uvas acaba por ser uma receita útil.

DOC Douro a preços baixos

A consequência das uvas para DOC Douro serem, na sua esmagadora maioria, transacionadas a preços 55% abaixo do seu custo real, é a de que muitos vinhos DOC Douro, depois de engarrafados, são vendidos ao consumidor em Portugal e no estrangeiro a preços artificialmente baixos.

Esta situação está a comprometer seriamente o futuro dos Vinhos DOC Douro, porque na altura em que o custo real de produção destes vinhos se refletir no respetivo preço de venda ao consumidor, já habituado a comprar estes ao mesmo preço dos vinhos de regiões com custos muito inferiores, haverá garantidamente uma reação muito negativa no volume de vendas, o que poderá vir a revelar-se catastrófico.

O futuro

Existem no Douro lavradores, enólogos e empresas de enorme competência e de nível mundial, que estão a fazer excelentes vinhos e a criar mercados em todo o mundo, valorizando a produção da RDD. Mas chegou a altura de se estabelecer um sistema mais claro e mais equitativo, que responda às questões acima apresentadas, e que dê mais sustentabilidade económica aos lavradores.

Neste enquadramento terá, na minha opinião, de se considerar as seguintes medidas:

1.Uma redução gradual na área total de vinha na RDD

Com 43.480 hectares de vinha e excedentes sistémicos, a região deve ser reduzida lentamente em aproximadamente 5.000 hectares, durante os próximos 10 anos. Este deve ser um processo totalmente voluntário. Os lavradores que não têm sucessão ou vontade de continuar ou, simplesmente, não têm dimensão para um projeto economicamente viável deverão ser justamente compensados pelo abandono.

Atualmente o Instituto dos Vinhos do Douro e Porto (IVDP) detém reservas financeiras de mais de €9 milhões, obtidos de taxas pagas por todos os operadores da RDD. Estes fundos, acrescidos de outros, nomeadamente taxas sobre vendas de uvas, devem ser usados para permitir a saída digna dos que querem abandonar as vinhas, e de incentivar os lavradores que querem continuar a criar unidades maiores e economicamente mais viáveis. O resultado será o da valorização das vinhas e das suas uvas, permitindo um melhor futuro para todos.

2.Equilibrar a regulamentação entre o Vinho do Porto e DOC Douro

Não podemos ter uma região com dois pesos e duas medidas, como é o caso atual. A consequência do atual sistema é altamente nefasta e está a criar graves distorções e enormes prejuízos aos lavradores, comprometendo o futuro dos dois vinhos mais importantes produzidos na nossa região: o Vinho do Porto e o DOC Douro.

3.Cadastro e melhor fiscalização

Está em curso o cadastro detalhado das vinhas do Douro no IVDP. Este registo é da maior importância. Também tem de haver maior e muito mais apertada fiscalização para garantir que as vinhas estão a ser bem tratadas e que merecem o benefício. Quem não cuidar das suas vinhas deverá estar sujeito à perda do benefício.

As DCP (Declaração de Colheita e Produção) anuais de cada lavrador devem ser publicadas para moralizar o sistema e torná-lo mais transparente.

A venda do benefício sem uvas tem de acabar. Quem vende a licença sem uvas, deve abdicar do seu benefício e este deve ser dado aos lavradores que estão dedicados à produção de Vinho do Porto. O benefício não pode continuar a ser considerado simplesmente uma receita para financiar outros projetos.

Chegou o tempo de resolver os graves desequilíbrios e distorções na RDD e de estabelecer um sistema renovado de regulamentação, adequado ao século XXI, e mais justo para todos os atores desta nobre região, Património da Humanidade.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.

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