Neste chão risca-se um barco, património de um país virado para o mar

António José Carmo deixou de desenhar barcos de madeira em 2004, mas está por estes dias a recriar esse trabalho, no chão da Alfândega de Vila do Conde, num esforço de preservação de um saber tradicional.

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Até dia 13 de Outubro, António José Carmo desenha um gasoleiro no chão da Alfândega de Vila do Conde Nelson Garrido
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Até dia 13 de Outubro, António José Carmo desenha um gasoleiro no chão da Alfândega de Vila do Conde Nelson Garrido
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Até dia 13 de Outubro, António José Carmo desenha um gasoleiro no chão da Alfândega de Vila do Conde Nelson Garrido
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Até dia 13 de Outubro, António José Carmo desenha um gasoleiro no chão da Alfândega de Vila do Conde Nelson Garrido
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Até dia 13 de Outubro, António José Carmo desenha um gasoleiro no chão da Alfândega de Vila do Conde Nelson Garrido
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Até dia 13 de Outubro, António José Carmo desenha um gasoleiro no chão da Alfândega de Vila do Conde Nelson Garrido
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Até dia 13 de Outubro, António José Carmo desenha um gasoleiro no chão da Alfândega de Vila do Conde Nelson Garrido
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Até dia 13 de Outubro, António José Carmo desenha um gasoleiro no chão da Alfândega de Vila do Conde Nelson Garrido

A sala luminosa, de amplas janelas, parece ter sido feita para aquilo. Sob a observação atenta, e silenciosa, de um juíz com ar bonacheirão e de outras personagens de cera do Museu da Alfândega Régia de Vila do Conde, António José Carmo arrasta-se de joelhos sobre um chão negro, no qual vem desenhando, desde o final de Setembro, os riscos de um pequeno gasoleiro de nove metros de fora a fora, barco de pesca de meados do século passado.

Com a evolução do sector, já não se fazem embarcações de madeira, nem há quem os desenhe, muito menos.  E por isso, o homem de 59 anos que vemos riscando aquele chão é, ele próprio, património, guardador de técnicas em desuso, que o projecto Vila do Conde - Um Porto para o Mundo tenta preservar em várias iniciativas, como esta que se prolonga até sexta-feira.

Há anos que os estaleiros de Vila do Conde, outrora os mais pujantes na construção em madeira, se dedicam apenas a reparações da frota existente. Os novos barcos, poucos, são em alumínio ou outros materiais, e as técnicas antigas vão-se perdendo, bem como os homens capazes de as pôr em prática. Que o diga António José Carmo, que depois de 25 anos a riscar embarcações na empresa fundada pelo avô Samuel, se viu sem mais trabalho, ali por volta de 2004, altura em que desenhou o Novo Rosa Clara. Dois anos depois mudou de vida, embora sem nunca se afastar do rio que, há gerações, alimenta o negócio da família.

Abriu uma loja de bicicletas primeiro, um restaurante, depois: Chamou-lhe Ribeira das Naus, e quem lá entrasse perceberia que, se a comida era boa, a conversa em torno da cultura marítima, e da construção naval, era ainda melhor, ou não fosse toda a decoração - e desde logo o balcão encimado com o risco de parte de uma nau - profusamente dedicada à vida que, aparentemente, o dono deixara para trás. Durante os anos que trabalhara na Samuel e Filhos, já sob a alçada do pai, Francisco Carmo, e do tio António, este desenhador naval participou na concepção e construção das caravelas Bartolomeu Dias, Vera Cruz e Boa Esperança e, claro, na nau Vila do Conde, amarrada ao cais em frente à sua própria casa e ao restaurante que entretanto mudou de dono, mas não de nome.

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António José Carmo, de 59 anos, trabalhou 25 anos como desenhador naval na empresa da família Garrido

A verdade é que, desde que deixou o estaleiro, António José Carmo mergulhou fundo nos livros sobre o tema, tornando-se num consultor requisitado por quem o estuda. E carrega, nas palavras, essa ligação profunda à ribeira da antiga vila tornada cidade. Território da foz do Ave onde a construção naval, atirada, desde a década de 90, para a margem sul do rio, antecede a própria nacionalidade e se desenvolveu, a par com o comércio marítimo nacional e internacional, logo nos primeiros reinados, alcançando grande pujança no século XV e XVI. Altura em que, por sinal, naquela mesma curva do rio, foi mandado erguer por D. João II (1487), o edifício da Allfândega Régia em que nos encontramos.

“No século XVI construíram-se aqui mais de cem embarcações de duas gáveas, de 250 a 300 tonéis, maiores do que a que está lá fora, que tem apenas uma gávea”, recorda António José Carmo, citando de cabeça os dados disponibilizados nos estudos de Amélia Polónia - cujo arquivo pessoal deu origem ao Centro de Documentação dos Portos Quinhentistas que está instalado no piso de cima deste mesmo Museu da Âlfandega Régia - e no livro Naus e Galeões na Ribeira de Lisboa: A Construção Naval no séc XVI para a Rota do Cabo, de Leonor Freire Costa.

De Vila do Conde para Lisboa

Curiosamente, vai explicando, foram as rotas para Oriente, que pediam navios de maior tonelagem, que ditaram a saída para Lisboa de imensa mão-de-obra qualificada de Vila do Conde: vila impedida, pelas características do seu porto, de se acometer em empreitadas como as que, na capital do reino, levaram à construção de navios de mais de mil toneladas, com quatro cobertas. Uma opção errada, lembra este especialista, notando que tais dimensões criavam problemas estruturais às naus, potenciando perdas de navios, cargas valiosas e pessoas a uma escala nunca antes vista, e levando a que armadores e construtores acabassem por arrepiar caminho.

O homem do risco recorda que, no Livro da Fábrica das Naus, perante a evidência do erro ditado pela ambição, o padre Fernando Oliveira aconselha, em 1580, a construção de navios com não mais de três cobertas e uma capacidade a rondar as 450 toneladas. A obra de referência, considerada o primeiro tratado ibérico sobre construção naval, tem sido alvo de estudo aprofundado por parte deste especialista que se foi transformando, com este duplo saber acumulado, prático e teórico, num elemento fulcral em projectos de arqueologia náutica, como o que levou à descoberta, em Belinho, Esposende, de um navio ibérico do século XVI.

É como consultor, também, que este vilacondense surge associado à iniciativa Um Porto para o Mundo, com a qual o município procura elevar a construção naval em madeira a Património da Humanidade. A sua experiência, aliada ao estudo dos regimentos antigos, levaram-no a identificar paralelismos entre as técnicas do século XVI e as que se usavam, nos vários estaleiros locais, para as embarcações de pesca, que foram, durante todo o século XX, o sustento desta actividade. Se o aspecto muda, António José Carmo assegura que as peças e o processo de construção de uma traineira e de uma nau são idênticos, ou não saíssem estes barcos das mãos de carpinteiros navais com gerações de experiência acumulada, e entre os quais até a linguagem remonta, nalguns termos, aos tempos do Livro da Fábrica das Naus, assinala.

Uma alfândega que já foi sala do risco

A família de António José Carmo tem ligação à construção naval pelo menos desde o século XVIII. O avô começou em 1935, e com a evolução das embarcações, as empresas sediadas em Vila do Conde ganharam primazia nacional. “Em 50 anos, entre 1950 e 2000 a empresa da minha família fez 531 barcos de mais de 12 metros”, contabiliza. O número é bem maior se incluirmos os vários estaleiros locais, um deles, o dos Irmãos Viana, instalado no porto da Póvoa de Varzim, que tiveram origem em antigos operários do velho Samuel. Todos juntos, acredita o neto, terão construído mais de mil barcos, ao longo do século XX.  

Parte desses barcos foram mesmo desenhados no chão deste edifício onde nos encontramos, e que antes de ser reabilitado pelo município e transformado em museu, chegou a ser armazém dos estaleiros Samuel e Filhos Lda, cuja carreira se encontrava, na margem do rio, a metros dali. "Às vezes, até no chão se comia", rememora, vincando a importância desta fase do processo global de construção.

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A sala central da Alfândega Régia de Vila do Conde é a sala do risco até 13 de Outubro Nelson Garrido

Se o barco fosse bem riscado, podia-se poupar dias de trabalho no corte das madeiras, com ganhos de eficiência, e de custos, notórios.  As embarcações maiores eram desenhadas no edifício da antiga seca do bacalhau, recorda o neto do fundador da empresa, explicando que hoje haverá em Vila do Conde mais duas ou três pessoas que saberiam, se quisessem, voltar a riscar um barco no chão.

E que jeito lhe daria a ajuda. A recriação da sala do risco já deveria ter terminado. Mas a verdade é que, de tanto dar explicações aos turistas que visitam a alfândega, e que são surpreendidos por aquela quadrícula cheia de linhas no chão, o trabalho rendeu menos do que se esperaria. Além disso, o que era para ser um traço branco desenhado no contraplacado negro que por estes dias forra o soalho da alfândega teve de ser transformado numa incisão, feita com uma máquina, que resiste à passagem dos visitantes que o riscador de barcos recebe com entusiasmo pelo menos até dia 13 de Outubro. Esta é a nova data marcada para o fim desta iniciativa após a qual os painéis com as várias secções de um casco vão enriquecer a exposição da vizinha Casa do Barco, onde ficará ao lado de um gasoleiro já construído. 

Como se percebeu na manhã desta sexta-feira, quando conversava com um casal de turistas, ouvi-lo, é participar numa aula de geometria, e reencontrar gestos, moldes e ferramentas que caíram em desuso. Sabendo-se que se nada for feito, tudo acabará, quando este e outros homens do risco desaparecerem, o objectivo global do projecto Vila do Conde - Um Porto para o Mundo, nota a responsável pelo Museu de Vila do Conde, Ivone Pereira, é garantir precisamente que este saber permaneça, e que possa, inclusivamente, voltar a ser posto em prática.

A cidade persegue o sonho de participar na construção de uma réplica do famoso veleiro Cutty Sark, projecto de um armador russo, mas dificilmente chegará lá sem o apoio do Estado Português. O mesmo Estado, neste caso a Direcção-Geral do Património Cultural, que ainda não terminou o processo de inclusão destes saberes no Inventário Nacional de Património Imaterial, passo sem o qual a candidatura à UNESCO não pode ser feita. Até lá, o trabalho de preservação de uma actividade ancestral na foz do Ave continua, com um espírito resumido na frase com que o homem do risco se despede do PÚBLICO: “O que eu sei não me pertence, pertence a todos”.

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