Marc Bernaus, o herói de Andorra que jogou com Xavi e Puyol

Contratado aos 14 anos pelo Barcelona, Marc Bernaus conviveu de perto com alguns dos maiores talentos do futebol mundial. Em 2004 foi o autor do golo que deu à selecção andorrana a primeira vitória em jogos oficiais.

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Marc Bernaus (à esquerda) ao serviço da selecção de Andorra em 2011 Albert Gea/Reuters

Era uma vez um principado nos Pirenéus que sonhava ter uma selecção de futebol que não andasse a vida toda a levar goleadas. Nos primeiros anos de existência da equipa de Andorra as derrotas foram a regra nos jogos oficiais. Até que, em 2004, Marc Bernaus proporcionou aos adeptos andorranos uma experiência que eles desconheciam: celebrar um triunfo. Na qualificação para o Mundial 2006, a selecção de Andorra recebeu e venceu a Macedónia graças a um golo do então futebolista do Elche. E, nesse dia 13 de Outubro, Bernaus tornou-se um herói e entrou para os livros de história.

Amanhã a selecção andorrana recebe Portugal (19h45, RTP1) e Marc Bernaus, actualmente com 40 anos e retirado do futebol desde 2013, reconheceu que, apesar da evolução recente, é difícil perspectivar uma surpresa de Andorra frente à equipa de Fernando Santos. “Estamos a falar de duas selecções de nível distinto. Portugal é uma das selecções mais fortes neste momento, e Andorra toda a gente sabe que é uma das mais fracas. Será difícil surpreender”, analisou o ex-futebolista e actualmente empresário, em conversa telefónica com o PÚBLICO.

O futebol em Andorra e em Portugal joga-se a escalas diferentes: segundo dados cedidos ao PÚBLICO pela UEFA, havia no principado um total de 3309 praticantes federados na temporada 2016-17. Em Portugal, no mesmo período, eram 182.860. “Nos últimos anos Andorra melhorou. Sofre menos goleadas do que antiguamente, quando era comum perder por cinco, seis ou sete a zero. Melhorou muito fisicamente e, apesar de a maioria dos jogadores não serem profissionais, trabalham com maior intensidade. Mas a nível técnico e táctico, Andorra e Portugal são planetas diferentes”, admitiu Marc Bernaus.

O herói do primeiro triunfo de Andorra em jogos oficiais era um corpo estranho no planeta futebolístico andorrano: foi contratado pelo Barcelona aos 14 anos e passou por todos os escalões de formação do emblema catalão, tendo chegado a ser internacional pelas selecções jovens de Espanha – e em 1997 disputou o Mundial sub-20. Chegar a La Masia, o centro do futebol de formação do Barcelona, era um sonho tornado realidade: “Toda a minha vida fui do Barcelona. A minha família tem raízes catalãs. Era um sonho incrível vestir aquela camisola, e continuo muito agradecido ao clube. Agora, em trabalho, continuo a lidar com pessoas do Barcelona que têm sempre as portas abertas para mim”, contou.

O “incrível” Dream Team

“Contrataram-me com 14 anos. Eu era um miúdo, e num amigável contra uma equipa jovem de Barcelona gostaram de mim. Fiquei até aos 22, passei por todos os escalões e estreei-me pela equipa principal num jogo da Taça da Catalunha. Vivi a época do Dream Team, de Cruyff. É o que tenho mais presente. Depois veio Bobby Robson, Louis van Gaal. Mas quem idolatro mais, porque vivi isso por dentro, é o Dream Team. Era incrível. Stoichkov, Koeman, Bakero... E Cruyff”, recordou Marc Bernaus. “Era incrível”, repetiu o ex-internacional andorrano, lembrando que em La Masia conviveu com “alguns dos melhores futebolistas do mundo”: “Eu era da geração de Xavi e Puyol e tenho muito orgulho por ser companheiro deles. Os amigos nunca se perdem. Também me lembro do Victor Valdés e do Iniesta, mas eles eram mais novos, não estávamos na mesma equipa.”

O sonho terminou aos 22 anos, quando Marc Bernaus decidiu ir “em busca” da carreira. Fez o seu percurso por clubes do segundo e terceiro escalões do futebol espanhol e em 2004 marcou o tal golo histórico pela selecção de Andorra, o único no seu historial de 32 internacionalizações. Um momento que o ex-futebolista nem considera o melhor da carreira: “Foi bonito, um momento em que consegui algo na minha carreira. É uma história para contar aos filhos, e entrei nos livros de recordes... Mas o melhor foram as subidas de divisão que vivi.”

O golo teve impacto global. “Na altura estava a jogar no Elche, na segunda divisão. Recolhi um ressalto na área e meti-a lá dentro. Não tive noção imediata da repercussão daquilo. Depois do jogo meti-me no carro e ao caminho para Elche, porque tinha jogo no fim-de-semana. Mas o telemóvel já tinha centenas de mensagens e solicitações da imprensa internacional. Era estranho. Na Macedónia não foi bem aceite perder com Andorra, chegou a falar-se em apostas”, disse.

Ainda que a selecção andorrana tenha ficado em último lugar no grupo de qualificação para o Mundial 2006, foi um trajecto inesquecível. Depois do triunfo sobre a Macedónia, a equipa do principado ainda conseguiu empatar em Skopje e conquistar também um ponto na recepção à Finlândia. E, em Junho deste ano, no apuramento para o Mundial 2018, Andorra obteve o segundo triunfo da história em partidas oficiais: 1-0 sobre a Hungria. “Finalmente tenho com quem partilhar a atenção dos jornalistas”, atirou Marc Bernaus com uma gargalhada. “E temos o mesmo nome!”, acrescentou, referindo-se a Marc Rebés, autor do golo que deu a vitória sobre os húngaros.

Quanto ao jogo de amanhã contra Portugal, Marc Bernaus lamenta não ter disponibilidade para ir ao estádio. “Tenho trabalho em Girona, a duas horas de Andorra, onde vivo. Gostava de ir, mas não vou poder”, confessou. Uma coisa é garantida: “De certeza que vão estar muitos portugueses nas bancadas. Há muitos portugueses que vieram trabalhar para Andorra e ficaram por cá. Quando a selecção portuguesa joga, ou quando conquistou o Europeu, havia pessoas a celebrar na rua. Quando Portugal ganha fazem-se notar”, disse o ex-internacional andorrano.

A conversa acaba com Marc Bernaus a lamentar os “dias difíceis” que a Catalunha tem vindo a viver. Pelas suas raízes familiares, e por actualmente residir na região, o ex-internacional andorrano admite que também se sente catalão. “A violência não era necessária. A Catalunha é pela paz, as pessoas protestam porque querem independência. Mas pacificamente, sem violência. Espanha não esteve bem. A Polícia Nacional e a Guardia Civil não estiveram à altura. Nunca queremos violência, só pedimos democracia. Pedimos que nos ouçam. Se for sim, óptimo. Se for não, tudo bem também. Não é necessário aquilo que se viu e como nos trataram. Mas as pessoas continuam a ser pacíficas e a reclamar algo que sonham para o seu futuro. Em Girona estiveram 60 mil pessoas na rua, fui com os meus filhos, cantámos e estivemos tranquilos”, concluiu.

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