Kazuo Ishiguro: Será que a arte e o amor fazem realmente a diferença?

Em 2005, Kazuo Ishiguro foi finalista ao Prémio Booker com o romance Nunca me Deixes. Um dia antes de saber que estava na shortlist do prémio, deu a sua única entrevista ao PÚBLICO, por telefone, que viria a ser capa do suplemento Mil Folhas.

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Stephen Hird/Reuters

Entrevista originalmente publicada a 24 de Setembro de 2005

O que aconteceria se em vez de uma era nuclear tivéssemos vivido uma explosão biotecnológica? Em Nunca Me Deixes — que põe a hipótese assim, no passado —, Kazuo Ishiguro parte desta ideia para a construção de uma terrível distopia protagonizada por três jovens adultos.

Kathy, Ruth e Tommy cresceram juntos num colégio interno. É no reencontro, anos depois, que a cortina de fumo sobre as suas vidas começa realmente a dissipar-se. Por então, dois deles já são “dadores”, um é “ajudante”. O escritor demora a revelar-nos o significado exacto destas palavras e a totalidade do que implicam — na realidade, acaba por nunca fazê-lo: deixa-nos a nós, leitores, ir atrás do impulso negro de completar o puzzle em cada detalhe mórbido e em crescendo de desconforto e voracidade.

O tom de thriller numa obra que pega em temas mais comuns à ficção científica não foi intencional — Ishiguro diz que decorreu do enorme desconhecimento que as personagens têm de si próprias. Como nos mais clássicos romances de formação, o que acompanhamos são as suas dores de perda de inocência. E é com a crescente noção que ganham sobre a sua mortalidade que a narrativa vai ficando cada vez mais carregada de questões éticas e morais.

Já considerado como a sua melhor obra depois de Os Despojos do Dia (1988), Nunca Me Deixes foi anunciado no dia 8 [de Setembro de 2005] como um dos seis finalistas do Prémio Booker. Ishiguro falou com o Mil Folhas no dia anterior, quando ainda estava entre os 17 nomes da long list. Apesar de tudo, nesse dia, nada de excepcional se passava; afinal, já em 2001 a sua quinta obra (Quando Éramos Órfãos, ed. Gradiva) tinha estado na mesma situação e, antes disso, em 1988, aquele que era apenas o seu terceiro livro (Os Despojos do Dia, também Gradiva) já lhe tinha merecido a vitória.

Desde Os Despojos do Dia passaram-se quase duas décadas. Hoje, aos 50 anos, ele costuma vestir de negro integral, Versace da cabeça aos pés. É assim que o imaginamos do outro lado da linha, quando, às 14h35, atende o telefone em Londres e esclarece à partida: “Presumo que lhe tenham dito: temos 20 minutos. Tenho um encontro e às três menos cinco tenho que sair de casa.”

Já disse em várias entrevistas que começa a construir cada novo livro a partir de uma pergunta. Qual foi a que se colocou para Nunca Me Deixes?
Quando digo que começo com uma pergunta quero dizer que começo de qualquer coisa muita abstracta. Conheço escritores que gostam de começar com uma ideia de enredo, há pessoas que pensam em Cuba mesmo antes da revolução e a história surge-lhes à medida que investigam o período definido. Eu não começo um livro com uma ideia de história, começo com noções abstractas. Em Nunca Me Deixes acho que essas noções são muito simples: têm que ver com a brevidade do nosso tempo de vida, por exemplo. Acho que, se há uma pergunta, é: como é que encaramos o facto de saber que vamos morrer? Quais são as coisas realmente importantes enquanto estamos vivos? Soa a qualquer coisa de demasiado fundamental e enorme mas foi o meu ponto de partida.

A partir daí, em que momento se virou para as possibilidades da biotecnologia como enquadramento? O que é que o levou a usar temas como a clonagem, o transplante e a doação de órgãos?
Foi quase no fim. Na verdade, fiz três tentativas para escrever esta novela. A primeira foi em 1990, logo depois de Os Despojos do Dia. Tenho bastantes páginas que escrevi na altura: ainda não havia, de todo, este enquadramento da clonagem e da doação de órgãos. Na altura, estava a escrever sobre um grupo de jovens semelhantes aos que acabaram por ficar na versão final. Chamei-lhes “estudantes” e eles viviam em Inglaterra, no campo. Sabia que não eram estudantes universitários e sabia que qualquer destino estranho os aguardava. Achei que ia ter que ver com a problemática das armas nucleares e andei às voltas com várias narrativas que tinham que ver com isso, mas não conseguia chegar ao ambiente, não encontrava o contexto da minha história — foi por isso que a abandonei. Fiz uma segunda tentativa acho que há seis ou sete anos. Uma vez mais, tenho vários conjuntos de esboços. Aquele que finalmente se transformou em Nunca Me Deixes comecei-o em 2001, num momento em que a questão da clonagem era um tema quente na Inglaterra — foi depois de o professor Ian Wilmut ter feito a ovelha Dolly. Esta não é uma área pela qual eu me sinta naturalmente atraído — não sou alguém que siga de perto os desenvolvimentos nesta área de pesquisa ou na ciência, em geral —, mas muitas das implicações da biotecnologia que estavam a ser discutidas na altura interessaram-me particularmente e, de repente, ocorreu-me que este era o elo em falta.

Por outras palavras: acho que sempre tive uma história, sempre tive um conjunto de problemas que queria abordar — precisava de um grupo de jovens estudantes que estivessem condenados, cujas vidas fossem quase natural e inevitavelmente cortadas a meio —, mas acho que, ao longo dos anos 90, tudo o que tentava era bastante melodramático ou excessivamente forjado.

Até certo ponto acho que a questão da clonagem ainda parece bastante forçada [risos], mas interessou-me por querer falar no processo de passar de criança a jovem adulto e, daí, a velho de uma maneira nova. Achei que conseguia fazer isso, ao confinar toda a história ao período que normalmente seria a juventude, mas que, aqui, é tudo o que há. É por isso que no fim da novela estes jovens adultos estão a pensar e a comportar-se como velhos: têm que encarar as mesmas questões e as mesmas decisões que eles.

Um facto desconcertante é a acção, à partida próxima da ficção científica, estar a decorrer no passado, mais concretamente numa Inglaterra de “finais dos anos 90”. Há o tipo de arquitectura e paisagens que nos são familiares, centros comerciais, campos verdes, falésias à beira-mar — tudo é descrito em estranhamento, mas perfeitamente reconhecível na sua especificidade. Essa opção é só uma referência ao momento em que começou a trabalhar no livro ou corresponde a um programa de intenções mais vasto?
Os dois. Eu sempre estive comprometido com certo tipo de ambiente: nasci nos anos 50, a minha vida de jovem adulto enraiza-se nos anos 70 e 80... Em parte é o que diz: não quis mexer na datação. Mas também não quis escrever qualquer coisa que parecesse uma profecia. Não gostaria que as pessoas interpretassem este livro como um aviso sobre o que pode acontecer à sociedade se seguirmos este ou aquele caminho, gostaria que as pessoas sentissem as ressonâncias da história que conto e pudessem aplicar a metáfora às vidas que vivemos hoje e que sempre vivemos. E há outro aspecto: a energia criativa para pensar sobre aquilo com que o mundo se parecerá um dia não está em mim como escritor. Há quem o faça de maneira espantosa — a mim não me estimula, não me dei sequer ao trabalho de o tentar. Como disse, interessam-me mais as ressonâncias de uma metáfora que a perspectiva profética.

Seja como for, Nunca Me Deixes revela-se como o oposto negro de uma utopia. Vê o mundo em vivemos como uma distopia?
Acho que não estamos a viver nada que se pareça com o universo distópico que construo. Por outro lado, parece-me um exercício interessante perguntarmo-nos como é que a nossa sociedade reagiria se nos tivéssemos colocado na posição de ter um grupo de pessoas a ser explorado ao ponto do que acontece no livro. Se beneficiasse a maioria de nós, qual seria a nossa atitude? Não tenho uma resposta imediata, mas, se olharmos para a história, é fácil de constatar que as pessoas são chocantemente capazes de explorar outras pessoas. Se se olhar para o mundo como um todo, pode-se defender que este é, de facto, o tipo de sociedade que temos. Temos uma parte rica do mundo que, para manter e fazer crescer a sua economia e os seus confortos, está disposta a manter outras partes do mundo e as pessoas que lá vivem numa pobreza abjecta. Desde que isso esteja bem longe dos olhares, parecemos absolutamente dispostos a tolerá-lo.

Não sei se isto interessa necessariamente aos leitores, mas o que fiz enquanto estava a escrever Nunca Me Deixes foi trocar o desenvolvimento das armas nucleares, que vem da Segunda Guerra Mundial, pelo desenvolvimento da biotecnologia. O que fiz foi pensar no que poderia ter acontecido se, em vez de termos tido uma era nuclear, tivéssemos tido uma explosão da biotecnologia. A minha história é sobre os “e se?...”. Basta pensar na situação ridícula em que nos colocámos com a questão do armamento nuclear: depois de haver a tecnologia, foi tão rápido que chegámos ao ponto de nos podermos aniquilar não uma mas várias vezes seguidas! Pior: foi apenas uma questão de anos até chegarmos ao ponto de toda a gente ter esse tipo de poder apontado à cabeça dos outros! A partir disto, não me pareceu incrível que acabássemos com um programa de clonagem como o que descrevo.

No fundo, estamos aqui a falar sobre a condição humana e a (in)gestão que fazemos de nós mesmos. Era esse o meu objectivo. Nesse sentido, há um outro aspecto perturbador na sua narrativa: no princípio temos um conjunto de personagens fechadas num colégio interno, onde tudo o que fazem é facilmente controlável. Contudo, a partir de certo momento, elas tornam-se seres relativamente autónomos — têm casas, carros, viajam, só não tentam é escapar ao fim que lhes foi traçado. Acredita em qualquer coisa como o destino?
Nos primeiros esboços que escrevi, tinha tentativas de fuga, só no fim decidi que preferia um mundo em que não houvesse essa opção. É uma questão psicológica: pareceu-me mais interessante que estas pessoas aceitassem o seu destino. Mais do que isso: interessou-me que quem quer que seja que comanda este sistema tivesse partido já do pressuposto de que eles aceitariam aquilo que lhes estava destinado. Também percebi que quando o tema dos clones aparece num filme ou num livro normalmente é a metáfora de um mundo de escravidão. Não vi o filme com o Ewan McGregor e a Scarlett Johansson [A Ilha], mas há uma excelente novela do David Mitchell que saiu aqui, na Inglaterra, no ano passado [Cloud Atlas]. Tem uma passagem assim, com uma classe de clones, no futuro, que é explorada e tenta escapar. É a metáfora óbvia e podem construir-se alegorias poderosas usando-a — não o ter feito talvez seja mesmo o ponto fraco do meu enquadramento —, mas optei por deixar essa via de parte porque achei que, assim, chegava a qualquer coisa muito mais próxima da maneira como todos encaramos a morte. Na verdade, não há fuga, o que encontramos são formas de nos confortarmos perante a inevitabilidade: viramo-nos para a religião, e acreditamos numa vida posterior, ou vamos pela via da arte, que fica depois de nós... Há várias estratégias...

Mas em Nunca Me Deixes a arte e o amor surgem como duas vias de possível prorrogação do fim...
São perguntas, mais do que respostas. A arte e o amor fazem realmente a diferença? Começámos por falar no tipo de perguntas que me fiz para começar a escrever este livro – acho que essa pergunta me foi surgindo ao longo de todo o processo. Será que a arte e o amor fazem realmente a diferença? A resposta sugerida pelo livro é não, não vivemos mais porque conseguimos apaixonar-nos por alguém, não vamos adiar o nosso destino produzindo obras de arte.

Mas?...
Mas [risos]... Acho que estas coisas podem ser uma ilusão, mas, mesmo que o sejam, dão significado à nossa vida. As ilusões são importantes, exactamente como as memórias. Fica-nos o que recordamos de pessoas que perdemos, por exemplo.

A questão da memória é, precisamente, um dos aspectos mais cruéis desta obra. Nenhuma das personagens se lembra de rigorosamente nada da sua infância para além dos dias de Hailsham. É particularmente terrível quando tentam pensar nos pais, por exemplo. Isso desenvolveu-se a partir de uma questão de economia narrativa ou foi uma opção anterior e mais deliberada?
Hailsham é uma espécie de versão destilada do que eu acho que é a infância, um modelo. Claro que tudo está muito simplificado — aliás, toda esta obra tem qualquer coisa de fábula, de versão muito simplificada da vida humana típica —, mas Hailsham é uma construção em cimento que encarna o que eu acho que é ser criança.

Nem todos crescemos num colégio interno, mas todos crescemos num mundo cuidadosamente gerido pelos adultos. Enquanto crianças, a informação que recebemos é gerida ao ponto de realmente não percebermos muito, ou mesmo a maior parte do que se passa à frente dos nossos olhos. Crescemos a saber e a não saber. Tal como as crianças deste livro, estamos protegidos do mundo exterior, estamos excluídos dele ainda que fisicamente presentes.

Quando a minha filha era uns anos mais nova e eu andava com ela pelo bairro, ficava sempre abismado com a facilidade com que absolutos estranhos entravam em conspiração comigo para a enganar. Na presença de uma criança, toda a gente faz uma cara divertida e vozinhas cómicas. Se há uma discussão e chega uma criança pequena, os gritos param. Acho que estamos todos desesperados por fazer as crianças acreditarem que o mundo é um lugar melhor do que realmente é. Se calhar é assim que deve ser, só que, quando elas crescem, melhor ou pior, nós, os adultos, temos de lhes dar um bocadinho mais sobre as más notícias. Hailsham é o princípio disso.

No seu caso, a infância deve ter sido um momento de duplo estranhamento, tendo em conta que chegou à Inglaterra, vindo do Japão, já com quase seis anos. Essa espécie de aterragem forçada no ambiente britânico do Surrey e o facto de a sua mãe ser uma sobrevivente de Nagasáqui ainda são fontes de inspiração? Foram-no para Nunca Me Deixes?
Acho que tudo o que escrevo está influenciado pelo facto de ter crescido num país de que não fazia realmente parte; já o facto de a minha mãe estar em Nagasáqui com outros membros da minha família quando a segunda bomba atómica foi lançada, acho que só tem directamente que ver com este livro por me ter causado um medo ou uma desconfiança na ciência. Acho que todos tememos uma coisa como uma bomba atómica, só que eu nasci em Nagasáqui e aprendi o que isso quer dizer de uma maneira diferente da maioria das pessoas. A minha desconfiança relativamente à ciência e à capacidade que a sociedade humana tem para gerir as suas próprias descobertas está provavelmente enraizada nesse facto.

Curiosamente, nos últimos meses houve vários autores a lançarem livros em que revelam o mesmo tipo de temores. Há o seu Nunca Me Deixes e mencionou Cloud Atlas, de David Mitchell. Em Specimen Days, Michael Cunningham vê a Terra do século XXIII como um lugar inviável em que a esperança está em robôs feitos de carne e dotados de livre arbítrio. Em La Possibilité d’Une Île, Michel Houellebecq diz que não faltam mais dez anos até todos podermos ser clonados de forma a atingir a eternidade... São todos autores a trabalhar fora dos cânones mais habituais da ficção científica. Tem alguma ideia sobre os motivos deste boom?
Não li nem o Houellebecq nem o Cunningham, mas acho que sempre houve livros e filmes a lidar com os medos ligados à evolução da ciência, o que acontece é que talvez no passado tenham sido mais canalizados noutras direcções.

Até ao fim da Guerra Fria estivemos tão focados nas armas nucleares que quando se levantava a hipótese de a ciência chegar ao ponto de destruir a Terra era do nuclear que se falava. Hoje o que se debate é o uso das células estaminais. Nesse sentido, a clonagem e a ameaça de uma guerra nuclear estão em posições equivalentes, acho é que nos assustam de uma maneira ligeiramente diferente.

Ao contrário do que acontecia (e ainda acontece) com a ameaça nuclear, com a clonagem não tememos a aniquilação, tememos uma profunda redefinição do que é um ser humano, tememos um realinhamento profundo da ordem social, acho que tememos tornar-nos uma subespécie, porque um novo tipo de humano será “melhor”. Há só uma coisa em comum entre estes dois medos: o receio de que, uma vez aberta a caixa [de Pandora], ela não se volte a fechar. Há o medo de que não seja possível voltar atrás e pôr tudo outra vez lá para dentro — e é tão fácil abrir a caixa! Seja como for, é útil para os escritores ter cenários como o da clonagem: permite-nos examinar aspectos da sociedade com um olhar refrescado. É um artifício muito útil para pensar no que significa ser humano.

Quer dizer que as sucessivas molduras são só pretextos para continuar às voltas com a velha, talvez eterna, questão do que é ser humano?
Eu sou daqueles que acham que as perguntas que nos vamos fazendo na literatura são praticamente imutáveis. Em Nunca Me Deixes, a questão da clonagem é aquilo de que mais facilmente poderia prescindir — precisaria apenas de encontrar outro cenário em que pudesse contar a minha história. O urgente era encontrar uma situação em que as vidas destas crianças estivessem limitadas a uma esperança de cerca de 30 anos e que elas aceitassem esse facto. É tudo.

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