Dezenas de crianças dormiram na sala onde milhares votaram

Uma “noite mágica” numa escola e um dia à porta dela. Como dezenas de pessoas permitiram tantos votos emocionados.

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Jantar numa escola em Vic, onde um grupo de catalães passou a noite REUTERS/Vincent Westincent West/Reuters

No pátio da escola infantil Joan Miró há borboletas e flores pintadas em colunas de cimento e muitos caixotes para reciclagem de lixo. Há quatro árvores frondosas e o chão está coberto de folhas das cores do Outono. Pelas 23h de sábado, ainda a mesa do jantar estava montada, secretárias e mais secretárias encostadas umas às outras. Poucos minutos depois da meia-noite, já o cenário se tinha transformado, a mesa desaparecera e as cadeiras em meia lua serviam agora para reunir os presentes em assembleia.

Faltava só fechar a porta, saber quem ficava dentro e quem ia dormir a casa. “Adeus, minha querida. Gosto muito de ti”, dizia um senhor, olhos mareados e voz embargada, ele do lado de fora da porta, a mulher lá dentro, onde ficaria com a filha. “Eu sei que ninguém vai para a guerra, mas também ninguém sabe o que vai acontecer”, tenta explicar o senhor.

“Agora mesmo, há informações de que os Piolíns estão a deixar o porto. Não sabemos, também é este o jogo deles”, começa por dizer Guillermo às cerca de 70 pessoas que se sentaram para o ouvir num silêncio concentrado de acontecimento solene.

Piolín é o Piu Piu da série de animação Looney Tunes que entrou na campanha do referendo independentista catalão por ser um dos bonecos pintados no casco de um dos três barcos de cruzeiro alugados por Madrid para instalar os dez mil reforços policiais enviados para a Catalunha. Agentes antimotim da Guarda Civil e unidades de intervenção da Polícia Nacional com a missão de impedir o voto, suspenso pelo Tribunal Constitucional e considerado ilegal pelo presidente do Governo Mariano Rajoy.

“Sabemos que a noite será longa e o dia ainda mais. Sabemos que os Mossos [d’Esquadra, a polícia catalã] virão e tentaremos salvaguardar este lugar. Ninguém é obrigado a fazer nada, estar aqui já é muito”, continuou Guillermo. Com os filhos nesta escola, decidiu organizar-se com vizinhos para a ocupar. “Não entendemos que se possa cometer a barbaridade de encerrar uma escola para proibir uma votação”, diz, terminada a reunião.

Alfredo, um dos outros pais do bairro transformado em activista de fim-de-semana, pegou no microfone para insistir que quem ficasse poderia dar por si “em desobediência civil”. “Há aqui pessoas mais velhas, crianças. Ninguém quer armar-se em herói. Lá fora não há inimigos. Somos pacíficos e continuaremos a sê-lo.” Lembrando que às 5h chegariam reforços, para o “pequeno-almoço popular”, Alfredo sugeria que quem não tivesse aqui a sua mesa de voto poderia aproveitar esse momento para se dirigir à sua escola.

“Não estamos num velório. Estamos de Festa Maior [prolongamento da festa de La Mercè, o pretexto usado por muitas escolas para organizar as actividades que lhes permitiram manter-se abertas]”, afirmou ainda Guillermo. “E o que aqui se está a passar hoje é, de alguma forma, mágico. A lição que estão a dar também”, acrescentou, enquanto os presentes aplaudiam.

Com excepção das crianças, poucos pregaram olho na Joan Miró. Os adultos liam ou conversavam e a porta afinal nunca esteve bem fechada. Alguns sentaram-se junto à entrada. Durante toda a noite foi passando gente, vários casais de idosos, a garantir que não faziam falta. A presença de crianças e pessoas mais velhas nas escolas era um dos argumentos que os Mossos podiam invocar para justificar não desalojar e encerrar o espaço.

Comida e muitas crianças

Os Mossos vieram. Pelas duas da manhã, um agente chamou alguém responsável e leu uma declaração para Guillermo assinar: “Então, estão aqui a realizar a Festa do Outono com actividades lúdicas que incluem jogos de tabuleiro, maratona de cinema… E têm tudo o que precisam, comida suficiente?” Sim, sim, isso mesmo. “Temos muitas crianças”, sublinhou Guillermo. Pouco importa se aqui não há Festa do Outono, como outras escolas decidiram intitular as actividades extracurriculares destes dias.

Às 5h chegaram os prometidos reforços, muitas e muitas dezenas de pessoas. Comeram-se bolachas, bebeu-se muito chocolate quente, que por aqui o pequeno-almoço é doce, mas o nervosismo depressa pôs toda a gente na rua, ainda era noite e já ameaçava chover. Uma hora depois chegavam mais dois Mossos e desta vez não queriam apenas uma assinatura. “O que fazem aqui?”, “E não nos deixam entrar?” “Não”, respondeu Alfredo, o responsável à mão. O mesmo “não” que repetiria à chegada de mais dois agentes, os que identificaram.

Ninguém arredou pé. Nem às 7h, nem às 8h nem às 9h, quando a chuva era muita e os voluntários da noite já tinham cedido o lugar a observadores dos partidos e a um responsável da Junta Eleitoral.

Seis mesas de voto e nenhum presidente ou vogal apareceu. Afinal, as 5500 cartas para os sorteados pela Generalitat foram apreendidas pela Guardia Civil. Não há problema, seis filas de três voluntários; os primeiros três de cada mesa podem ocupar-se dela. Um pormenor: às 8h, o governo regional anunciara que se votaria com um censo universal ao qual só se podia aceder através de uma aplicação. Pelo menos os presidentes de mesa teriam de ter um smartphone.

Não foi por isso que o voto na escola Joan Miró custou a arrancar. Voluntários houve, a mais até. O problema foi que depois de testado, o sistema logo foi bloqueado por ordens da justiça e demorou até que um novo link permitisse aceder à app. A meio da manhã decidiu-se que o voto seria “manual”, assentando-se os nomes dos eleitores, devidamente identificados, mas sem garantias de que não poderiam votar uma segunda vez.

“Na minha idade?”

Face à enchente de tantas pessoas de tanta idade, face à chuva, face à vontade imensa que todos tinham de votar, os responsáveis não viram outra opção. Josep, de 78 anos, foi o primeiro a votar. "Na minha idade? Chegar a votar pela independência? Caramba, já não pensava que o faria", dizia, a custo, enquanto esperava, ansioso. “Votaremos”, gritou-se muitas vezes durante o dia, entre o nervosismo de quem descobrira que tinha passado a noite com um infiltrado da Polícia Nacional e esperava a qualquer momento uma eventual carga policial.

Carme, de cadeira de rodas e rosto vermelho do choro, não foi a última pessoa a votar na Joan Miró, já depois das 19h. Foi a última a receber um dos grandes aplausos da multidão que durante a tarde nunca parou de crescer. Tantos aplausos e a catalã não conseguiu evitar mais lágrimas, de lenço de papel na mão. “Obrigada, obrigada.”

São quase 20h, nem sombra de Polícia Nacional ou Guarda Civil. Os votos vão mesmo contar-se e já há um novo grito: “Votámos, votámos.”

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