Separatismo em democracia: a Escócia, o Quebeque e a Catalunha (II)

O argumento da legitimidade não pode ser usado para ultrapassar o Estado de direito democrático e violar as suas leis. É necessário romper o círculo vicioso instalado.

1. Em Espanha, a possibilidade de um referendo para a independência da Catalunha tem contornos constitucionais substancialmente diferentes do Reino Unido e do Canadá. A Constituição de 1978 resulta da transição da ditadura franquista para a democracia. É recente quando comparada com ambas. Não tem a flexibilidade da Constituição britânica — que é um misto de costumes jurídicos e leis escritas —, deixando ao Parlamento de Westminster amplos poderes de modificação a qualquer altura. Nem contém a possibilidade de secessão existente no Canadá, através de algo similar ao Clarity Act. (Note-se que não foi estabelecido aí um direito unilateral à secessão, sendo esta configurada como uma possibilidade extrema, com diversos requisitos legais prévios a cumprir, e necessitando sempre de um acordo negociado entre as partes.) Mas a Constituição espanhola prevê o referendo — numa matéria completada pela Lei Orgânica 2/1980 —, para diferentes situações, atribuindo-lhe mais do que um tipo de efeitos jurídicos. Podem, assim, existir referendos consultivos ou vinculativos. O referendo consultivo, conforme estabelece o art.º 92, foi previsto para “decisões políticas de especial importância”. Está ainda previsto o referendo como requisito para ratificação do Estatuto de uma Comunidade Autónoma, a realizar pelo corpo eleitoral desta, conforme prevê o art.º 152, nº 2, pontos 2 e 3. (Todavia, o Estatuto terá de ser ainda aprovado por ambas as câmaras do parlamento nacional — as Cortes). Quanto ao referendo vinculativo, foi estabelecido no contexto da revisão da Constituição, para ratificação de uma alteração ao seu texto (art.º 167 n.º 3 e art.º 168 n.º 3).

2. Como tem sido, na prática, interpretado e aplicado o art.º 92 da Constituição espanhola? Teoricamente, poderia ser a base legal para um referendo politicamente pactuado sobre a independência na Catalunha. Todavia, o entendimento que tem prevalecido, desde logo por ser partilhado pelos dois principais partidos de poder espanhóis (o PP, ao centro-direita e o PSOE, ao centro-esquerda), tem fechado essa possibilidade. A posição é a de que um referendo sobre a independência de uma parte do território espanhol nunca poderá ser realizado apenas na Comunidade Autónoma que a reivindica. Teria de ser feito a nível nacional. Posição oposta foi defendida pela Generalitat. Alguns juristas espanhóis de relevo, como Francisco Rubio Llorente, que já foi vice-presidente do Tribunal Constitucional, admitiram que um referendo não vinculativo sobre a independência, realizado numa única Comunidade Autónoma, não seria inconstitucional. Mas, mesmo considerando que o art.º 92 permite à Catalunha organizar legalmente um referendo — o que está longe de ter consenso —, há outros obstáculos importantes. Acabará por ser sempre necessária uma revisão da Constituição pelas razões que explicarei a seguir.

3. Em 2014, a Catalunha fez um referendo de facto, à margem dos mecanismos legais. As duas perguntas colocadas aos eleitores catalães foram estas: “Quer que a Catalunha seja um Estado? Em caso afirmativo, quer que esse Estado seja independente?” Nele participaram cerca de 2,3 milhões de eleitores com cerca de 80% dos votos favoráveis à independência. Para efeitos de análise da questão, vamos imaginar que tinha sido convocado e realizado nos termos do art.º 92 da Constituição espanhola. Quais seriam as consequências jurídicas e políticas? O seu resultado poderia ser ignorado, dado a Constituição lhe dar um carácter facultativo? E, no caso de o resultado dever ser tido em conta pelo governo do Estado espanhol e principais actores políticos nacionais — por exemplo, devido a um acordo político prévio entre os principais partidos nesse sentido —, como se poderia por em prática o resultado, no quadro constitucional existente? Aqui entramos na parte mais delicada. Antes de respondermos às questões anteriores, importa deixar uma reflexão: um referendo consultivo, sem efeitos automáticos sobre a independência, tende a provocar resultados distorcidos. Como os eleitores sabem que o seu voto não tem como consequência automática a independência, podem, apesar de não a desejarem verdadeiramente, votar a seu favor para melhorar a posição negocial face ao poder central. O problema é que assim não sabemos exactamente a vontade de quem votou.

4. Sem uma reforma constitucional negociada a priori entre os principais partidos políticos, um referendo, ainda que convocado legalmente, arrisca-se a provocar uma grave crise constitucional. É que depois não existem mecanismos constitucionais para levar à prática a vontade de independência desse território. A única saída constitucional e política coerente passaria por uma revisão constitucional previamente acordada. Entre outras coisas, implicaria incluir no Título VIII da Constituição de 1978, “A Organização Territorial do Estado”, a possibilidade de secessão das Comunidades Autónomas, desde que os requisitos constitucionais e legais fossem atendidos. Mas não é fácil uma revisão constitucional em Espanha, menos ainda num assunto tão delicado como este, onde está em causa a soberania e integridade territorial do Estado. O processo de revisão constitucional, previsto nos artigos 166 a 169, só é possível de pôr em prática com apoios alargados. Não chega uma maioria absoluta. Por princípio, nos termos do art.º 167, necessita de uma maioria de 3/5 nas duas câmaras, Congresso e Senado. A revisão constitucional poderá ainda ter de ser submetida a referendo, a pedido de 1/10 dos membros de ambas as Câmaras. No caso de revisão total da Constituição, ou de uma parcial que afecte certas partes previamente identificadas do texto constitucional, maiorias de 2/3 e obrigatoriedade de submissão a referendo para aprovação.

5. Em face do analisado, uma solução para o caso da Catalunha poderia ser criar legislação constitucional similar à do Canadá, originada pela ambição separatista do Quebeque. Quanto ao caso da Escócia, o modelo britânico é demasiado sui generis para poder ser replicado. Mas a história nacional e as tradições constitucionais do Estado espanhol são substancialmente diferentes de ambos os casos. Nesta altura, não parecem existir condições políticas para uma modificação constitucional tão importante nas suas implicações. Em toda a vigência da Constituição de 1978 apenas foram feitas duas revisões: em 1992 e em 2011, ambas ligadas a questões europeias (Tratado de Maastricht e estabilidade orçamental, respectivamente), em tempos onde existia um consenso europeísta. Mas este é um assunto bem mais fracturante, só ultrapassável com um grande entendimento entre os partidos de poder e apoiado pela sociedade. Esse entendimento não existe numa altura de grandes tensões políticas. Para os mais nacionalistas em Espanha, a Constituição é vista como um texto intocável nessas matérias, tendencialmente perpétuo. Todavia, uma constituição é um instrumento jurídico regulador de uma sociedade politicamente organizada. Se for demasiado rígida, pode não permitir a acção política adequada às circunstâncias. No pior cenário, transformará crises políticas em crises constitucionais, adensando-as mais. Resta saber se, com o arrastar da crise política, essa engrenagem não estará em curso.

6. Por último, a questão da legitimidade para efectuar um referendo e declarar a independência em caso de vitória do “sim”. Os independentistas da Catalunha invocam essa legitimidade, como sendo inquestionável devido à sua história, identidade e ao direito à autodeterminação dos povos e para criar uma “legalidade paralela”. É inequívoco que a questão da legitimidade deve ir além da legalidade. Só assim permite reagir contra a opressão de leis injustas, dando fundamentos éticos e de justiça para o seu não cumprimento pelo cidadão. Mas essa legitimidade seria líquida em situações de colonialismo, ou de opressão ocorrida em Estados não democráticos, com violações graves e sistemáticas dos direitos humanos. Os catalães não podem esquecer que aprovaram a Constituição de 1978, feita já em democracia, tendo participado amplamente no referendo que a ratificou, como todos os espanhóis. Esta garante os direitos fundamentais. Para além disso, a Espanha é membro da União Europeia onde existe uma Carta dos Direitos Fundamentais. É ainda signatária da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Assim, a actuação do governo espanhol pode ser objecto de recurso judicial nos tribunais do Estado e no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Por muito imperfeita que seja a sua democracia, se há excesso de reacção no uso da força — e se existirem violações de direitos humanos —, são passíveis de ser contestadas judicialmente por qualquer cidadão da Catalunha. O argumento da legitimidade não pode ser usado para ultrapassar o Estado de direito democrático e violar as suas leis. É necessário romper o círculo vicioso instalado. Nele, demasiadas vezes se olha apenas para um dos lados do problema e se esgrimem argumentos parciais e enviesados. Talvez o exemplo do Canadá possa inspirar a Espanha e a Catalunha a encontrarem uma solução democrática no âmbito do Estado de direito.

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