"Eu também sou contra megaprocessos", ironiza director do DCIAP

Num colóquio sobre corrupção em Lisboa, promovido pela PGR, discutiu-se a necessidade de haver megaprocessos. E falou-se em “melgaprocessos”, os “incomodativos”. Será que não se pode parti-los?

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Amadeu Guerra e Joana Marques Vidal Enric Vives-Rubio

A poucas semanas de o Ministério Público (MP) deduzir uma acusação contra o antigo primeiro-ministro José Sócrates, a discussão das virtudes e defeitos dos megaprocessos estiveram na ordem do dia, num colóquio nesta sexta-feira sobre a investigação e o julgamento da corrupção, que decorreu na sede da Polícia Judiciária, em Lisboa. A Operação Marquês raramente saiu da sombra, mas esteve presente. Uma participante evitou mesmo usar a designação pela qual esta é conhecida. Preferiu aludir, na sua intervenção, a “um certo processo que todos conhecemos”.

E foi também sem alusões concretas a este caso que o jurista André Lamas Leite lançou uma das maiores provocações do dia às muitas dezenas de procuradores que enchiam a sala: “Preocupa-me a questão dos megaprocessos que conduzem a mega-absolvições.” Sentado na plateia, Amadeu Guerra, o director do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), onde as ramificações da Operação Marquês são investigadas há mais de três anos, não resistiu a pedir a palavra para reagir. E fê-lo com ironia. “Eu também sou contra. Se me puderem tirar alguns... E se puder haver menos arguidos, menos escutas, menos contas bancárias nestes processos...”

Discorrendo sobre uma questão em que não existe unanimidade nem sequer dentro do MP — há procuradores que defendem ser melhor partir os grandes processos às fatias para que sejam julgados de forma mais eficiente e menos demorada —, Amadeu Guerra terminou a sua defesa num registo mais sério. “O que sou é contra entendimentos perversos de pessoas que não conhecem os casos concretos e dizem que fabricamos megaprocessos, porque, muitas vezes, a separação de processos não é possível, apesar do nosso esforço”, assegurou. Explicou depois porquê: “Há casos em que, se os separarmos, não conseguimos fazer prova em tribunal das ligações entre os diferentes arguidos.”

A forma como o MP se pode organizar melhor para investigar a criminalidade económico-financeira foi também abordada neste colóquio pela procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal. “Se até as redes criminosas se conseguem organizar!”, comparou a magistrada, que já por várias vezes foi obrigada a estender o prazo das investigações da Operação Marquês.

E foi num registo igualmente irónico que outro dos oradores, o advogado Rui Patrício, se referiu aos casos judiciais com tantas páginas que mesmo para procuradores e juízes é fácil perderem-se dentro deles. Chamou-lhes os “melgaprocessos”: “São incomodativos, porque não nos largam” durante os anos a fio em que se arrastam na Justiça, entupindo as salas de audiências dos tribunais. 

Magistrados como João Aibéo e a procuradora-geral distrital de Lisboa Maria José Morgado veriam com bons olhos a criação de um tribunal onde apenas fosse julgada a criminalidade altamente organizada, à semelhança do que já sucede em Espanha. “A Constituição não o proíbe, desde que ali não se julgue apenas uma categoria de crime. E não é isso que estamos a pedir”, referiu a especialista na luta contra a corrupção. 

Políticos que não cumprem

E no que à punição dos comportamentos desviantes dos políticos diz respeito existem procuradores que pensam haver ainda muito a fazer. É o caso de Rui Cardoso, ex-presidente do Sindicato de Magistrados do MP, para quem os titulares de cargos públicos que “se esquecem” de declarar ao Tribunal Constitucional os seus rendimentos e património ao Tribunal Constitucional, ou entregam dados falsos, deviam sofrer consequências mais pesadas do que aquelas que a lei prevê actualmente. Quais? Rui Cardoso avança várias hipóteses, a título não de sanções principais, mas como punições acessórias: “Perderem a subvenção vitalícia, deixarem de ser elegíveis — algo que já está mais ou menos na lei —, ou perderem o subsídio de reintegração [na vida profissional] são hipóteses a ponderar.”

Quanto ao seu efectivo controlo, que considera não existir, devia pertencer a uma entidade “verdadeiramente independente”, como o conselho de prevenção da corrupção — desde que lhe fossem dados meios para o fazer, autonomia financeira incluída. A recente aprovação de um novo código de conduta para membros do Governo e dirigentes da administração pública não parece suficiente a Rui Cardoso. “Aquilo de que precisamos é de uma verdadeira lei de probidade, e não de códigos de conduta.”

Quase antecipando o que Amadeu Guerra diria a seguir, o magistrado defendeu que o DCIAP não pode continuar a ser sobrecarregado com inquéritos “que podem ser tramitados com qualidade” noutros departamentos do MP. Quanto aos megaprocessos, Rui Cardoso não tem dúvidas: “Nalguns deles não se consegue provar nenhum crime se forem fatiados. E os arguidos passariam o resto da vida em julgamentos. Teriam de mudar a sua residência para o tribunal.”

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