Totalitarismo com a Catalunha: a parte pelo todo

A democracia espanhola também não terminará no dia 1 de Outubro de 2017, mas terá que esperar pelo dia 2 de Outubro para ver a explicação que o senhor Puigdemont dá aos seus seguidores.

George Lakoff mostrou-nos na sua obra clássica sobre a comunicação política (Não penses num elefante) que as palavras não são inocentes. Quando dizemos “elefante” podemos ter a certeza que o nosso interlocutor evoca automaticamente um animal com a tromba flexível e as orelhas grandes, embora o que desejemos fazer é pedir-lhe precisamente o oposto, que não pense num deles. A mesma coisa acontece com a linguagem política.

Os independentistas catalães conseguiram activar numa parte importante dos meios de comunicação internacionais e da população um quadro mental deste tipo; para quando os meios se referem às suas posições políticas e ideológicas, se fale de “os catalães” ou da “Catalunha” em vez de dizer “os independentistas catalães” ou “o independentismo catalão”. E, no entanto, segundo os resultados das eleições democráticas realizadas na região há apenas dois anos, representam unicamente, no melhor dos casos, 1,9 milhões de catalães: os votos que obteve a coligação dos partidos independentistas (Junts pel Sí e CUP) nas eleições autonómicas (apresentadas por eles mesmos como plebiscitarias) de 2015, 47,7% dos votantes perante 52,3% (más de dois milhões de catalães) que votaram nas opções não independentistas. A Catalunha tem 7,52 milhões de habitantes.

Os independentistas puseram o seu elefante na imprensa internacional: a parte pelo todo. Mas a realidade é bem diferente: o desafio e a luta não são da Catalunha ou de Barcelona mas da coligação independentista, e essa mobilização não se faz contra Rajoy ou contra Madrid mas contra o conjunto dos espanhóis e os catalães, que rejeitam completamente a atitude anti-democrática dos que querem impor a sua vontade por cima das maiorias com manifestações dos seus militantes e referendos tão armadilhados como os do Franco.

A fotografia da metade do parlamento catalão vazio, abandonado pelos representantes da maioria (52,3%) dos catalães quando se aprovaram as duas leis de desconexão, a do referendo, de 6 de Setembro, e a da “transitoriedade e fundacional” da república catalã, de 8 de Setembro, é mais eloquente que mil palavras. Deveria ser suficiente para que a imprensa não se deixe manipular pelo quadro conceptual que pretende impor o independentismo, aproveitando o atractivo de uma narrativa intencionadamente épica, de bandeiras, colorida e cheia de simplificações.

Penso que Portugal já viveu na sua transição a tentativa de confrontar a força da rua com as maiorias democráticas expressadas nas urnas. Felizmente o povo português seguiu nessa altura políticos do nível de Mário Soares, ao que se seguiram outros do mesmo valor tanto na esquerda como na direita, e hoje é outra das prósperas democracias europeias que dá ao mundo personagens de consenso como o actual secretário-geral da ONU, António Guterres. Talvez essa recordação possa servir agora para não cair nas armadilhas conceptuais com as que o independentismo catalão está a tentar a imprensa internacional. Na Catalunha temos uma situação complexa que os espanhóis resolverão através do respeito pelas leis democráticas e pelo diálogo, sem imposições, não como o do “referendo sim ou sim” que apresentaram os independentistas, um diálogo que voltou a ser proposto pelo presidente Rajoy na sua última intervenção sobre o assunto.

O independentismo agitou cada vez mais as paixões nacionalistas e conseguiu em parte transformar a política democrática num confronto de claques (o Barça é mais que um clube) com directores de colégios que promovem que as crianças vão às manifestações independentistas, grafittis do tipo “cidadãos esta não é a vossa terra” dirigidos contra o líder da principal força da oposição no parlamento catalão, ou apelidam de traidores ou renegados nas redes sociais os artistas e intelectuais, que como o cantor e autor Joan Manuel Serrat ou o escritor Juan Marsé não se juntaram à onda de “nacional-ismo” que desde o poder local e com recursos públicos tem propagado uma coligação independentista que não representa a maioria e que, muito provavelmente por isso, se nega a convocar eleições autonómicas, uma das possíveis saídas democráticas da situação. Sabem que é muito possível que, como há dois anos, não tenham novamente o apoio da maioria dos catalães.

Dorothy Martin estava convencida que o mundo acabava no dia 21 de Dezembro de 1954. Assim lhe foi comunicado por uns extraterrestres que a levariam a ela e a um grupo de fiéis num ovni. Cerca de uma dúzia dos seus seguidores – todos cidadãos inteligentes e honrados – tinham abandonado os seus empregos, vendido as suas propriedades ou deixado os seus cônjuges pela força das suas convicções. Esta história serviu ao psicólogo social Leon Festinger para explicar no seu livro When Profecy Fails, publicado em 1956, que ninguém é imune a este fenómeno que denominou de “dissonância cognitiva”. Rutger Bregman relembra-o no seu livro Utopia para realistas: “Quando a realidade choca com as nossas convicções mais profundas, preferimos ajustar a realidade antes do que corrigir a nossa visão do mundo. Não é só isso, tornamo-nos ainda mais inflexíveis das nossas convicções do que éramos. Diz-lhe que não estás de acordo e vira-te as costas. Mostra-lhe dados concretos ou números e questionará as tuas fontes. Apela à lógica e não será capaz de compreender o teu raciocínio.”

Não é este, portanto, o momento para repetir argumentos e dados (o diário El País, entre outros, reproduziu por estes dias uma montanha deles) mas para lamentar que as paixões desatadas não deixam que muitos vejam a realidade. “Não há nada mais irritante – diz Schopenhauer que o caso, em que, discutindo com um homem com razões e análises, pomos todos os nossos esforços em convencê-lo pensando que estamos unicamente perante a sua compreensão, e no fim descobrimos que não quer compreender; que estava relacionado com a sua vontade, que se fechava à verdade e intencionadamente punha sobre o tapete equívocos, confusões e sofismas por detrás do seu entendimento e da sua aparente incompreensão”. No dia 21 Dezembro de 1954 o mundo não acabou, mas a senhora Martin pode novamente convencer os seus seguidores que esse prodígio era devido à imperturbável fé do seu grupo. A democracia espanhola também não terminará no dia 1 de Outubro de 2017, mas terá que esperar pelo dia 2 de Outubro para ver a explicação que o senhor Puigdemont dá aos seus seguidores.     

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