The Empty Belly: uma angiografia à cabeça dele, outra à de Egas Moniz

Tem uma constelação gravada na cabeça e uma técnica singular. Tiago Francez saiu de Portugal antes de implodir com a crise — mas continua a pintar pontos brancos em paredes pretas. A última fica em Avanca.

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The Empty Belly à frente da sua parede em Estarreja Sara Pinheiro
The Empty Belly ao lado da sua parede em Estarreja
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O ESTAU desafiou-o a trabalhar a obra de Egas Moniz Sara Pinheiro
O ESTAU desafiou-o a trabalhar a obra de Egas Moniz
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O ESTAU desafiou-o a trabalhar a obra de Egas Moniz Sara Pinheiro
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Sara Pinheiro
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O andaime está há vários dias cravado junto a um prédio na esquina da N109 com a Rua da Nestlé, em frente ao Café Central de Avanca — e com uma placa a indicar a proximidade da Casa-Museu Egas Moniz, filho da terra. The Empty Belly está empoleirado, cabeça rapada cheia de estrelas, bolhas nas mãos e a roupa preta manchada de branco. "A peça nunca acaba", explica mais tarde ao PÚBLICO o artista convidado por Lara Seixo Rodrigues para entrar na cabeça do Nobel de Medicina na mais recente edição do ESTAU — Estarreja Arte Urbana, que decorreu de 9 a 17 de Setembro.

Um ponto. Este é o centro do seu universo, o início — e o fim — da vida. Penetrante como uma bala ou perfurante como uma agulha, um ponto final ou a intersecção entre coordenadas. Kandinsky dizia que "tudo começa com um ponto". The Empty Belly subscreve. Ponto.

A mancha de milhares de pontos brancos sobre um fundo preto, preto vai-se espalhando pela parede como um vírus. Diz quem passa e anda "que é um polvo", "que é uma árvore". "É uma angiografia à cabeça dele", interpreta The Empty Belly, que dormiu com A Nossa Casa, livro de Egas Moniz publicado em 1950, e que prolongou a sua estadia em Estarreja para além do limite do festival de arte urbana dado o paciente e demorado "picotado" da sua técnica — algo como pontilhismo aplicado a uma angiografia cerebral, a técnica pioneira inventada pelo médico português. É, de certa forma, um raio-X também à cabeça dele, do português que emigrou antes de implodir com a crise, do performer que foi preso duas vezes (em Paris por montar um cavalinho num parque infantil fora de horas e em Mulhouse por andar nu no topo de um edifício com uma bandeira de uma nuvem hasteada), do artista que vai passar os próximos tempos em Nova Iorque e que nunca irá abandonar os seus bebés The Dependent  O Subordinado (estão em Lisboa no Bairro Padre Cruz, na LxFactory ou algures em Entrecampos, no Convento do Carmo em Torres Novas, em Londres...). "Sou um bebé que chora. É um reflexo de mim, de não ter forma de fazer o que quero fazer por não ter os meios financeiros ou físicos ou mentais."

The Empty Belly, alter-ego de Tiago Francez, 27 anos, tem uma série de paredes que nunca viram a luz — e uma história que também não. Apelidou de Limits of Nowhere a série de paredes "completamente pretas, pretas". "O preto é uma tela em branco. E isso já me diz muito. O meu trabalho é positivo e não negativo. Aquilo que coloco sobre o preto é o que existe. Quando as pessoas desenham sobre uma tela branca vão colocando as sombras, que são um derivado da luz."

Primeiro os litros de tinta preta. Depois os pontos brancos de marcador posca. "Começo por uma parede preta, pela ideia de vazio, de ausência de luz. Os pontos brancos são como pontos de luz, como se tivesse todas as cores incluídas. Não vejo necessidade de colocar cor."

É por essas e por outras que, ao longe, Tiago não vê "nada". "Tenho de ir tratar disso. Devia usar óculos. Comecei a usar aos 12 anos, mas depois deixei. Sei que está cada vez pior... Ao perto tenho uma visão microscópica, mas ao longe... esquece." Ao perto, fechado no seu atelier, trabalha "branco no branco", com uma agulha e pequenas incisões numa placa branca de PVC, a sua "tela fina e resistente". "No final, quando acho que a peça está terminada, passo o rolo e 'tcharan!', efeito surpresa", descreve o noctívago. "Trabalho no escuro, durante a noite, com uma luz de presença num certo ângulo para poder ver como esse organismo se desenvolve e ganha forma."

Tudo aconteceu em Lisboa, nas Belas Artes. Começou em Design de Comunicação e terminou em Pintura ("que era o que eu queria ter feito de início, quando os meus pais disseram 'vai para Design que sempre tens escapatória'"). Ia às aulas de Gravura, faltava às outras. Em 2011, como pretexto para um projecto final de curso (I Against I) em colaboração com a Amnistia Internacional que consistia na reabilitação de espaços abandonados, apresentou os seus bebés a chorar, chamando a atenção para a fragilidade desses edifícios e como forma de reclamar o espaço público. "O bebé não tem forma verbal e manifesta as suas intenções pelo choro, a forma mais genuína e intrínseca ao ser humano de se exprimir. Nós somos assim também: completamente subordinados e dependentes. Precisamos sempre de alguém." Foi essa "fragilidade" ("do ser humano e dos edifícios em si") que conduziu The Empty Belly. "Tudo sai de mim. Existe a ideia de um vazio, que deve ser preenchido, de algo que está em falta", aponta o artista, cabeça rapada ocupada por uma tatuagem inspirada nas constelações abstractas de Picasso. "Parece uma planta de uma catedral. O meu cérebro é como o meu santuário e esta linha existe para me colocar a cabeça no sítio", exibe o artista, que tatua amigos (e também se tatua a si próprio).

Carimbos de vida

Às suas tatuagens — diz não ter muitas, mas também não sabe quantificar — chama-lhes "carimbos". De vida. Em 2010, a crise apertou "a sério" na sua família, obrigando-o a tomar decisões. Também por isso resolveu emigrar. "Coloco uma fasquia alta. Quero viajar e absorver. Percebi que em Portugal não existia muito respeito pelo que eu fazia." Fixou-se em Londres, onde chegou a stockroom manager de uma marca de roupa em Regent Street, função full time que, durante um ano e tal, foi deixando mazelas. "Matava-me física e mentalmente. Sentia-me frustrado. Queria criar. Senti que não dava", confessa Tiago Francez, que nessa altura juntava dias e dinheiro para pintar ilegalmente, pé-de-cabra e marcador molotow na mão, em Bricklane, em Berlim, em Bruxelas... "Têm-me saído bem do corpo. Mas eu sabia que tinha uma técnica singular e comecei a querer lançar os meus pozinhos. Aquilo que eu faço qualquer pessoa pode fazer. Talvez mais ninguém tenha é a mesma paciência."

Todos os dias lê uma página de O Tratado da Natureza Humana, de David Hume. "Será a minha Bíblia", diz. E confessa-se "um bocado maluco por filósofos". Por Nietzsche, Goethe, José Ortega y Gasset, por A Desumanização da Arte e outras "referências" que lhe permitam "seguir um raciocínio". Ou por A Comunidade, de Luiz Pacheco, que apareceu à sua frente para fazer todo o sentido ("Se eu escrevesse tão bem talvez tivesse escrito isto"). "Estou neste mundo, mas também estou noutro", sugere, mostrando-se algo crítico em relação a muita da arte urbana que prolifera. "Interessa-me abordar o interior, a parte que não vemos, a forma como nos comportamos, o que nos faz mover, o que te faz seres tu, o que te faz seres diferente, a forma como o corpo funciona." 

Desde Novembro do ano passado que The Empty Belly se dedica "exclusivamente à arte". "Não procuro fama, mas quero estar a um nível que me permita viver disto", assume Tiago, com duas exposições agendadas para 2018 (num refeitório de Mulhouse em Maio; em Paris em Setembro).

Estarreja. O ESTAU já se dissolveu. The Empty Belly continua agarrado à sua parede — deixou lá pele. À esquerda a cabeça dele. À direita da angiografia os códigos com as datas de nascimento das pessoas que vivem nos quatro apartamentos do edifício. E a vida lá dentro. "A peça nunca acaba."

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