Lei e política

Quando a Catalunha ferve, costuma abrir-se uma crise na Espanha.

Reserve as sextas-feiras para ler a newsletter de Jorge Almeida Fernandes sobre o mundo que não compreendemos.

Êxito judicial e fracasso político? É uma interrogação persistente na imprensa espanhola destes dois dias. A intervenção judicial e policial restabeleceu a ordem constitucional na Catalunha. Não haverá referendo no dia 1 de Outubro (1-O). Em contrapartida, segue-se uma intensa mobilização independentista. Muda a cena política catalã, com um provável salto qualitativo no conflito. Do lado de Madrid, mantém-se a impotência para romper a heteróclita coligação independentista catalã.

A intervenção era inevitável. Não podem coexistir duas legalidades dentro do mesmo Estado. Por outro lado, o Governo e a Justiça espanhóis não podiam aceitar a celebração de um referendo ilegal, que produziria irreversíveis efeitos políticos: com muitos ou poucos votantes, o bloco secessionista humilharia o Governo e proclamaria a vitória sobre Madrid, abrindo inclusive as portas a uma hipotética proclamação unilateral de independência. A partir do 6 de Setembro no Parlament catalão, com a aprovação das leis do referendo e da ruptura com Espanha, o “choque de comboios” era previsível.

Magistrados e polícias desmantelaram a logística do referendo. Em compensação, os independentistas não estão infelizes: pretendem alargar a sua insuficiente base de apoio graças à repressão. Queriam fazer o referendo mas, ao mesmo tempo, tudo faziam para forçar uma resposta dura do Estado para provocar um sentimento de indignação na Catalunha, criar novos focos de mobilização e romper o seu isolamento internacional. Viram com fervor as fotos de Barcelona nas primeiras páginas de muitos jornais europeus. Haverá mais no 1-O.

Na primeira fase do “processo”, os soberanistas promoveram a construção de um inimigo: a “Espanha rouba-nos”. Agora dão prioridade ao antiquíssimo tema da identidade e apostam na sua histórica cultura de vitimização.

A teoria do suflé

O mais impressionante é a debilidade política de Mariano Rajoy. O seu ponto forte é a “teoria do suflé”. No caso catalão, seria resistir ao surto independentista através da lei e esperar que o suflé desça. Por isso delega a intervenção na Justiça e na polícia, abrigando-se por trás do Tribunal Constitucional. Ele próprio o justificou na sua comunicação televisiva: tratou-se apenas de repor a legalidade. Ora, a política exige algo mais do que a aplicação das leis e o respeito da Constituição.

Para mal de Rajoy e da Espanha, a táctica da “imobilidade” criou um perigoso vazio: “O resultado é que não há na Catalunha um projecto alternativo ao independentismo e susceptível de lhe disputar o poder” (Josep Ramoneda).

Nem o Governo nem os grandes partidos espanhóis têm sido capazes de dar uma resposta aos catalães. O politólogo Lluís Orriols sublinha um ponto crucial ao frisar que “o debate sobre as vantagens e inconvenientes [da independência] foi monopolizado pela área soberanista”. Esta vende a secessão como o milagre para os problemas catalães. O Governo central mantém-se no terreno da legalidade vigente, “alheando-se do importante debate sobre as incertezas e custos associados à independência”. Faz esta opção para evitar reconhecer que a independência é um tema em cima da mesa. “Mas renunciar ao debate público tem inevitáveis custos na batalha para ganhar a opinião pública.”

O movimento independentista aproveita a imobilidade de Rajoy para atrair para o campo soberanista os federalistas que desaprovam a secessão mas concordam com um referendo legal e negociado. Deixar a iniciativa aos soberanistas é facilitar-lhes a conquista de uma “maioria social” que ainda não têm.

“Um erro frequente é considerar que o independentismo é um colectivo monolítico”, argumenta Orriols. “É uma coligação heterogénea de grupos com interesses distintos e preferências.” Há “independentistas incondicionais e independentistas circunstanciais cujo modelo territorial é uma Espanha federal”. Este é um sector estratégico que decidirá do futuro político da Catalunha e da Espanha. A falta de comparência do governo no debate público impede-o de “romper a coligação independentista, atraindo à suas fileiras os independentistas circunstanciais”.

O pesado silêncio espanhol

Há outra questão que se poderá colocar na Catalunha depois do 1-O: a possibilidade de eleições legislativas. A coligação de governo é composta por três forças díspares: o Partido Democrata Europeu Catalão (PDeCat, a antiga Convergência, de Jordi Pujol) e a Esquerda Republicana da Catalunha (ERC) que foram às eleições unidos na coligação Juntos pelo Sim. Têm o apoio da Candidatura de Unidade Popular (CUP), que se tornou no fiel da balança por só ela permitir a maioria parlamentar.

É uma curiosa companhia. O PDeCat, a que pertence Carles Puigdemont, tem uma cultura nacionalista e neoliberal. A ERC, do vice-presidente Oriol Junqueras, é nacionalista e socializante. A CUP é uma réplica do antigo anarquismo catalão: anticapitalista, anti-Espanha, anti-UE, anti-NATO. Assumiu de facto a liderança estratégica do processo e impôs uma “fuga para a frente”, com sucessivos ultimatos ao govern. Prepara, se lhe derem espaço, o que antigamente se chamava uma “anarqueirada”.

Resistirá esta maioria? A única coisa que a une é a Espanha. É de rigor o silêncio sobre o modelo económico-social duma Catalunha independente. O homem forte do govern é Junqueras. A ERC está em clara ascensão nas sondagens enquanto o PDeCat parece definhar. A mais recente sondagem, do El Diario, confirma esta tendência e mostra que o trio independentista pode não ter a maioria absoluta no Parlament. Recomenda-se prudência porque se ignora o impacto da intervenção judicial e policial na opinião catalã.

Entretanto, nas eleições municipais de 2015 surgiu uma nova força: o Catalunha em Comum, apoiado pelo Podemos, que fez eleger a alcadesa de Barcelona, Ada Colau, e defende com ambiguidade um referendo legal. Que aliança escolherá Junqueras após o dia 1 de Outubro?

Nada parece estabilizado ou previsível em Espanha. Um dos mistérios é a inexistência de debate público sobre a Catalunha e o crítico modelo territorial espanhol. Apenas nas páginas de opinião dos grandes jornais há alguma reflexão. Os dirigentes partidários limitam-se a declarações genéricas sobre o federalismo. Não é apenas Rajoy que se alheia.

Adverte Orriols: “A opinião pública espanhola não parece ter assimilado a magnitude do problema catalão.” Mostra-se saturada com o assunto. Não quer entender que a unidade da Espanha implica assumir certos custos. “Se não perceberem o risco real da secessão, não quererão pagar o custo da reforma territorial.”

Parece terem esquecido que, sempre que a Catalunha entra em combustão, há uma crise de sistema em Espanha.

Sugerir correcção
Ler 3 comentários