Deixem a Catalunha decidir o seu destino

Nenhuma democracia deve impedir os seus cidadãos de exercerem o mais básico dos direitos: pegar numa caneta e votar.

Todas as críticas em relação à forma como o referendo sobre a independência da Catalunha foi convocado são justas, tal como é justo considerar que os partidos pró-independência estão a apostar na violência das autoridades espanholas para conseguirem nas ruas aquilo que possivelmente não conseguiriam nas urnas. Ainda assim, apesar de todos os abusos e de todo o radicalismo, a intransigência de Madrid tem como consequência uma acusação difícil de refutar: os catalães estão a ser impedidos de votar e decidir o seu próprio destino.

Todos conhecemos a objecção jurídica a um referendo: não é Madrid que o impede, mas a Constituição espanhola. Certo. Só que essa foi a justificação utilizada para proibir e combater todos os movimentos independentistas durante os séculos XIX e XX. Hoje em dia, a utilidade política desse argumento é nula, e só convence quem já está convencido. É próprio de qualquer Constituição defender a integridade territorial do país. Mas se nenhuma parte de um território puder algum dia sonhar em ser independente, dado esse desejo ser invariavelmente inconstitucional, a única alternativa que resta é o recurso à violência — porque só através da violência a independência poderá algum dia ser alcançada. É isso que os espanhóis desejam que venha a acontecer na Catalunha?

De um lado, está a Constituição espanhola. Do outro, o direito — que é suposto ser universal — à autodeterminação. O que temos na Catalunha são dois direitos fundamentais em conflito. Para evitar o recurso à força, eles só podem ser geridos politicamente, e não através de acórdãos do Tribunal Constitucional, que está naturalmente obrigado a defender uma Constituição que impede a independência da Catalunha. Se a Constituição espanhola não autoriza as comunidades autónomas a referendarem questões relacionadas com a soberania nacional, a única solução constitucionalmente aceitável seria mudar a Constituição, ou então convocar todo o povo espanhol para decidir se os catalães têm ou não direito à sua independência. O que significa que a única solução é uma não-solução — seria como referendar se o tio milionário deve continuar a fazer parte da família.

Embora o governo espanhol tenha a força da lei do seu lado, não há como extirpar de um habitante do século XXI a convicção do seu direito à autodeterminação. As leis são bonitas e muito úteis, mas não resolvem todos os problemas da existência humana. Juridicamente, Olivença é portuguesa. Só que existe esta chatice: os seus habitantes preferem ser espanhóis. Estará alguém interessado em invadir Olivença com uma G3 na mão direita e a acta do Congresso de Viena de 1815 na mão esquerda? Não é nos cartapácios de Direito que se encontram soluções mágicas para os impasses políticos.

Tenho perfeita consciência de todos os problemas que uma hipotética separação da Catalunha iria provocar, desde a proliferação do separatismo pela Europa fora à afirmação de um perigosíssimo egoísmo regional, típico das regiões ricas que querem dizer adeus às regiões pobres. Contudo, previamente a todas estas considerações, é minha convicção profunda que um país consiste num conjunto de pessoas que deseja permanecer junta, seja por razões sentimentais, históricas, sociais ou culturais. Espanha não pode reter a Catalunha contra a sua vontade. E, sobretudo, nenhuma democracia deve impedir os seus cidadãos de exercerem o mais básico dos direitos: pegar numa caneta e votar.

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