Catalunha: (d)o outro lado da história

Engana-se quem continua a achar que nacionalistas só os há em Barcelona e Bilbao.

Foi em 2012 — o PP voltara ao governo e a política de austeridade vinha acompanhada das mais graves afrontas aos direitos cívicos que, por causa dela, se praticou em qualquer país europeu — que se deu a viragem independentista na sociedade catalã. Até então, e desde a transição democrática de 1977-81, que, apesar das tensões, os catalães pareciam ter encontrado o seu lugar em Espanha.

A crise começou quando Parlamento espanhol e Tribunal Constitucional amputaram unilateralmente o novo Estatuto de Autonomia aprovado por referendo pelos catalães em 2006. O Parlamento de Barcelona quis consultar os catalães em 2014 e já então Madrid decretou que qualquer votação era ilegal. Dessa vez, Rajoy, que dispunha de maioria absoluta, fez o que é básico em qualquer Estado de Direito: esperou que se cometesse aquilo que Madrid entendia ser uma ilegalidade (o uso de fundos públicos para promover uma consulta que o Tribunal Constitucional consideraria ilegal) para processar membros do governo catalão, a começar pelo seu presidente. Mas agora, antes ainda de o referendo se realizar, passou todas as marcas. Começou por recorrer ao Ministério Público, que em Espanha não é independente do poder executivo, para, incumprindo o código do processo penal, ameaçar prender 75% dos presidentes de câmara catalães por apoiarem o referendo convocado para 1 de outubro, presumindo que este é "ilegal" quando o Tribunal Constitucional se limitou a suspender a legislação em que se baseia. Depois, apreendeu material de propaganda e boletins de voto para a preparação do referendo, quer institucional, quer de partidos políticos. Ao mesmo tempo, obrigou autoridades locais e o Ministério Público a proibir a realização em espaços públicos de simples debates (!) ou manifestações sobre o referendo por todo o território espanhol, em evidente ofensa à liberdade de expressão e manifestação. Na quarta, a pedido da Guarda Civil, um juiz mandou prender 14 altos cargos do governo catalão, proceder a buscas em vários departamentos governamentais e cercar a sede de um partido político, enfrentando dezenas de milhares de manifestantes que se mobilizaram em Barcelona, por toda a Catalunha e por várias cidades espanholas, a começar por Madrid, num clima de tensão que o governo sabe que se agravará daqui até ao dia do referendo. Não confiando na polícia catalã, Madrid enviou efetivos do resto de Espanha da Guarda Civil e da Polícia Nacional, instalando-os em... quatro barcos ancorados no porto de Barcelona! Se era para ajudar os catalães a se sentirem num país ocupado, não se enganaram... Por último, o governo central suspendeu todas as transferências que a lei obriga Madrid a fazer para o governo catalão e bloqueou todas as contas deste, passando por cima do mecanismo constitucional prescrito para situações excecionais, não porque não pretenda agravar a tensão, mas simplesmente porque não quer sujeitar-se a ter que passar pela aprovação do Congresso espanhol, onde não dispõe de maioria absoluta.

Não surpreende que, deste lado da Península, Estado e media se mostrem eternamente receosos de que o governo espanhol nos veja como alimentando interessadamente a autodeterminação catalã para dela ver sair a "divisão" da Espanha. Vivi e trabalhei em Espanha, trabalho o ano todo com colegas, amigos e instituições espanholas, e sou testemunha da suspeita das elites espanholas face ao que acham ser a "ambiguidade" portuguesa sobre os problemas basco e catalão, atrás da qual veem aquilo que os nacionalistas espanhóis sempre viram em portugueses, franceses ou britânicos, ou até nos norte-americanos até aos anos 60: o sermos todos "anti-espanhóis"... Lamento mas não serve de nada continuar a olhar, desde Portugal, para a Catalunha, ou o País Basco, ou a Galiza, usando sempre o prisma enviesado do nacionalismo espanhol, por mais que ele se chame PSOE em vez de PP, ou El País em vez de El Mundo. Engana-se, e desde há muitos anos, quem continua a achar que nacionalistas só os há em Barcelona e em Bilbao e não os há em Madrid. Na era de Trump e do “Brexit”, era bom que se revissem conceitos.

A Espanha não é um país qualquer da Europa. É o Estado europeu que, 80 anos depois da guerra civil e 40 depois de iniciada a sua democratização, mantém inegáveis problemas de inconsistência nacional e, à escala da Europa Ocidental, o mais alto grau legalmente demonstrado de corrupção e de abusos contra os direitos humanos e as liberdades políticas, onde a falta de independência da magistratura e do Tribunal Constitucional são colocados ao nível de casos como a Hungria ou a Polónia.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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