Nanotecnologia “para uma sociedade mais segura”

Células solares para o revestimento de edifícios sustentáveis e bio-sensores que monitorizam a presença de toxinas na água são desenvolvidos no Laboratório Ibérico Internacional de Nanotecnologia, em Braga. São dispositivos medidos ao milímetro, feitos numa sala limpa de ambiente espacial

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O chão e o tecto são perfurados para facilitar a circulação do ar Paulo Pimenta
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Quem entra tem de permanecer numa câmara, onde jactos de ar são libertados, durante 15 segundos Paulo Pimenta
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Do fato especial fazem parte botas, carapuço, máscara facial, luvas e óculos Paulo Pimenta
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Esta sala é única na Península Ibérica em termos de “qualidade de ar e área” Paulo Pimenta
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Alguns dos equipamentos podem chegar a ser do tamanho de automóveis — e até de autocarros Paulo Pimenta
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"A maior fonte de contaminação da sala limpa são as pessoas", diz Pedro Salomé Paulo Pimenta
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Na área cinzenta, mais técnica, estão os maiores equipamentos Paulo Pimenta
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A sala está permanentemente a 20.3 graus celsius Paulo Pimenta

O pó é o inimigo número um (e dois, e três). Papel não entra — a menos que seja feito a partir de celulose especial —, o telemóvel tem de ser desinfectado com álcool, vários objectos do dia-a-dia estão interditos, sobretudo se tiverem velcro. Quem entra tem de vestir um fato completo, daqueles que lembram filmes de ficção científica, e permanecer numa câmara, onde jactos de ar são libertados, durante 15 segundos. Após perto de 15 minutos de preparação, estamos, por fim, na sala limpa do Laboratório Ibérico Internacional de Nanotecnologia (INL), em Braga.

Aqui, “um grão de pó é um Everest” e o ideal é que seja libertado o menor número possível de partículas, para que as amostras em uso não sejam comprometidas. A visita a esta sala — um “ambiente controlado” de 1000 metros quadrados — é guiada por Pedro Salomé, líder do grupo de investigação dedicado à nanofabricação de aplicações para opto-electrónica. Células solares e sensores são alguns dos dispositivos, com poucos centímetros, pensados e produzidos no INL, mais especificamente na sala limpa, única na Península Ibérica em termos de “qualidade de ar e área”.

“A maior parte do pó que temos em casa é pele morta”, começa por dizer Pedro Salomé, de 33 anos. Este facto “assustador” justifica a necessidade de investigadores, funcionários de manutenção e limpeza e convidados vestirem uma espécie de fato espacial próprio, com botas, carapuço e máscara facial — além das luvas e dos óculos de protecção. “A maior fonte de contaminação da sala limpa são as pessoas”, continua. Há regras estritas de segurança e a presença nos laboratórios exige uma formação prévia: andar depressa ou correr está fora de questão, bem como “berrar ou assustar” quem está concentrado em processos de fabricação que podem “ser perigosos”.

João Barbosa acompanha, atentamente, a explicação do investigador do INL, mas esta não é a primeira vez que o aluno do mestrado integrado em Engenharia de Micro e Nanotecnologias da Universidade Nova de Lisboa (UNL) ouve as regras de segurança da sala limpa. João foi um dos 29 estudantes de onze nacionalidades que participaram na edição de 2017 do programa de estágios de Verão, promovido pelo INL e que existe há já quatro anos. Concorreu com mais 128 estudantes, de 25 países, e passou os últimos dois meses no laboratório de Pedro Salomé a desenvolver “técnicas para aumentar a eficiência e baixar o custo das células solares, através de poupança de uso de materiais”, conseguindo reduzir cinco vezes a quantidade de matéria-prima. Miguel Cunha, colega de curso de João Barbosa em Lisboa, partilhou o laboratório no mesmo programa de estágios, pelo segundo ano consecutivo.

As células solares, com uma área de apenas 25 centímetros, podem vir a ser usadas no revestimento de edifícios sustentáveis. A litografia (do grego “escrever com luz”) de óptica convencional, de cariz industrial, é a técnica aplicada pelo grupo de investigação de Pedro Salomé no desenvolvimento de células solares. “Virtualmente, pode servir para aplicar em toda a electrónica: baterias, sensores, LED”, enumera. Até agora, prossegue o investigador, a técnica usada era a litografia de feixe de electrões (esta de cariz laboratorial), restrita a áreas mais pequenas e mais demorada.

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Na sala limpa alguns dos equipamentos usados são de cariz industrial Paulo Pimenta

Os equipamentos semi-industriais e industriais do INL permitem aos investigadores desenvolver protótipos de todos os projectos em curso. “Podemos fazer os nossos próprios dispositivos para termos um objecto do qual falar às pessoas. É muito diferente do que ter uma apresentação em Power Point.” A analogia é do director do instituto ibérico, Lars Montelius, que destaca o trabalho desenvolvido em parceria com empresas nacionais e internacionais. “Temos 80 [empresas] no portefólio e ajudamo-las a desenvolver novos produtos e serviços, ou a integrar novos componentes nos produtos já existentes”, revela o sueco. “Usamos o nosso conhecimento para ver o que lhes pode ser útil e criamos uma solução à medida, juntos.” Em produções agrícolas, exemplifica, sensores “muito precisos” podem monitorizar o crescimento da fruta, o processo de colheita ou a humidade. Tudo informações dadas em tempo real.

Organização de direito internacional

A vedação e os portões do INL criam uma barreira física entre a cidade de Braga e o trabalho aqui desenvolvido. Para a tentar derrubar, a 24 e 25 de Setembro (próximo domingo e segunda-feira), os portões vão abrir-se à população em geral num programa que inclui mais de 100 palestras, demonstrações, experiências científicas e exposições. Estabelecido como organização de direito internacional, o laboratório — inaugurado em 2009 pelos então Presidente da República, Cavaco Silva, e rei Juan Carlos, de Espanha — foi a primeira organização internacional de investigação na Península Ibérica. O relvado impecavelmente tratado que rodeia o edifício convida a leituras ao sol, mas, numa manhã de sexta-feira de Verão, não se vê uma única pessoa ao ar livre. Os amplos espaços interiores acolhem os 219 funcionários, de 21 nacionalidades, entre administrativos, investigadores com doutoramento, colaboradores e estudantes de universidades de todo mundo. Juntos são responsáveis por mais de 100 publicações por ano, número que deve ser ultrapassado quando 2017 chegar ao fim. Só nos primeiros nove meses do ano foram publicados 89 artigos científicos com o carimbo INL.

O objectivo derradeiro é “trabalhar para uma sociedade mais segura”, resume Lars Montelius. Urbanização, programas de mobilidade, saúde e bem-estar das pessoas são assumidas como as áreas fulcrais de investigação. E não faltam casos concretos. Montelius mostra um pequeno protótipo de um sensor, desenvolvido para a Câmara Municipal de Braga com vista à medição dos níveis da qualidade do ar da cidade. Tem apenas alguns centímetros, mas a ideia é que seja aperfeiçoado até “ser do tamanho de uma unha” e possa ser colocado na lapela de um casaco. É só um exemplo, sublinha, e pode ser fabricado e personalizado para outras cidades interessadas. Foi testado na cidade minhota, mas ainda não está em uso.

O projecto de Raquel Queirós é um dos exemplos já postos em prática. Na barragem espanhola de Beche, na Corunha, um bio-sensor idealizado e fabricado no INL está, desde há poucas semanas, a monitorizar a qualidade de água para “reconhecer contaminantes químicos ou biológicos”. A toxina microcistina LR, explica a investigadora de 33 anos, é “comum em águas estanques ou margens de rios” e pode ser nociva para a saúde pública. “Em concentração elevada ou durante períodos prolongados, afecta o fígado humano”, diz. A concentração da toxina em questão “é a única legislada a nível europeu e internacional”, o que pode explicar o interesse e o investimento em projectos de investigação relacionados com a sua monitorização. O protótipo, inteiramente desenvolvido no INL, é inspeccionado semanalmente: os dados são recolhidos e enviados para o grupo de trabalho de Raquel Queirós, dedicado exclusivamente à qualidade de água.

A ouvir atentamente a explicação da doutorada em Física pela Universidade do Porto está Niveditha Ramesh. A jovem indiana de 21 anos estudou nanotecnologia e queria trabalhar num projecto relacionado com o ambiente, razão pela qual se decidiu a concorrer à edição 2017 do programa de estágios de Verão do INL. Nos últimos dois meses, integrou o estudo de Raquel Queirós e, garante, a experiência — a primeira vez na Europa, aliás — “foi incrível”. “Aqui [no INL], deixam-nos usar todos os instrumentos, algo novo para mim. Ensinam-nos.”

Niveditha teve a oportunidade de “construir polímeros sintéticos para o reconhecimento de toxinas” que podem acumular-se em tanques de aquacultura, nomeadamente em ostras, amêijoas e outro marisco, nomeadamente da saxitoxina. “Estamos a tentar impedir que as pessoas sejam afectadas por esta toxina, ao consumir acidentalmente marisco contaminado”, continua. No caso da saxitoxina, os polímeros sintéticos, desenvolvidos no laboratório, são “mobilizados nos sensores” e substituem os anticorpos, “moléculas biológicas que trazem problemas ao nível da estabilidade” utilizadas na monitorização, por exemplo, da microcistina LR. “Os polímeros são mais controláveis e robustos e estão sempre activos”, justifica Raquel Queirós.

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Da esquerda para a direita, o aluno de mestrado Miguel Cunha, o investigador Pedro Salomé, a aluna Niveditha Ramesh e a investigadora Raquel Queirós Paulo Pimenta

De regresso à sala de aspecto ficcional, com um permanente ruído de fundo a lembrar o que se ouve na cabina de um avião em pleno voo. Investigadores e funcionários de manutenção cruzam-se no corredor principal de acesso, com o tecto e o chão perfurados para facilitar a circulação do ar, de fato branco vestido e máscara na cara. Não é fácil identificarem-se, mas cumprimentam-se sempre em inglês — a língua oficial de trabalho do INL. Pedro Salomé, doutorado em Física Aplicada pela Universidade de Aveiro, chega a entrar e a sair da sala limpa “umas 30 vezes por dia”. Descrever os equipamentos, alguns do tamanho de automóveis e até de autocarros, a quem de laboratórios com tecnologia de ponta pouco ou nada sabe — a não ser o que os filmes sobre catástrofes químicas vão revelando — é um desafio para os cientistas. As analogias tornam-se indispensáveis.

Só mais uma, para terminar a visita guiada à sala permanentemente a 20.3 graus celsius, na passagem pela área cinzenta, mais técnica: “Se estivéssemos num teatro, esta seria a parte por detrás do palco.” Aqui, as regras de higiene são um pouco menos apertadas, culpa dos equipamentos de dimensão considerável e ruído mais elevado. Uma das aplicações destas máquinas é o desenvolvimento de sensores de campo magnético. “Quando bate, o coração cria um pequeno campo magnético”, explica. “Novos sensores estão a tentar fazer uma monitorização contínua desse campo magnético” — e sem ser necessário “perfurar ou fazer uma micro-cirurgia de instalação do próprio sensor”, algo que pode ser útil, por exemplo, em unidades médicas de queimados. “No protótipo criado, temos uma cama onde o dispositivo é instalado e onde a pessoa se deita, de peito para baixo, para que o dispositivo faça a medição.” Tudo numa escala inferior a um milímetro quadrado.  

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