Sobre a praxe e o direito a viver no século XXI

O momento é o da denúncia. Quem não a faz é conivente com a praxe.

No passado dia 14 de Setembro, o jornal PÚBLICO noticiou a existência de um “Manual de Sobrevivência do Caloiro”, oriundo da praxe da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP). “Servis”, “seres irracionais” e “pseudo-fêmeas” é parte do léxico utilizado para categorizar quem chega pela primeira vez ao Ensino Superior.

A praxe está à margem do Estado de Direito? Como escrevi acima, é falacioso fazer este debate assumindo que existem praxes onde morrem pessoas e outras onde não se chega a isso. A chantagem para entregarmos a nossa dignidade em troca de uma mão cheia de coisas que são gratuitas e que encontramos em alguém que se apresenta como potencial nosso amigo é, só por si, crime. Tudo o resto que aconteça para além disto só agrava a situação, não a desculpa.

Uma das maiores contradições entre quem defende a praxe passa por se querer distanciar, por exemplo, dos abusos que se tornam públicos, um pouco por todo o país, mas, ao mesmo tempo, numa altura em que são essas pessoas as que se encontram em melhor situação para denunciar esses mesmos abusos, escolhem sempre defender-se entre si do que expor o ridículo do que se vai passando lá dentro. Talvez por isso, ainda ninguém tenha tido coragem para defender abertamente o conteúdo do tal “Manual do Caloiro” mas se sintam no dever de defender a praxe da sua faculdade. O momento é outro: é o da denúncia. Quem não a faz, é conivente com ela.

Se um conjunto de trabalhadores achar que o assédio moral no trabalho é um mecanismo de integração, não passa a ser legal o patrão fazê-lo. Não se pode consentir que alguém prescinda dos seus direitos e dignidade pessoais. E se hoje, no século XXI, não permitimos que alguém seja assediado no trabalho, na rua, no supermercado, na praia, por que razão é permitimos que isso aconteça na praxe?

Há uma ideia feita na sociedade portuguesa: a praxe está à margem do Estado de Direito. Rege-se por regras próprias, não respondem perante a lei e basta o novo aluno dizer que aceita que tudo se torna possível. Numa relação sempre desigual, tal como se passa na praxe, a lei não proíbe, mas liberta.

Proibir a praxe: sim ou não? Sou assumidamente anti-praxe. Mas não tenho para mim que a solução passe por uma qualquer tentativa de proibir ou perseguir quem faz parte destes grupos. No entanto, também acredito que, no dia em que existirem mecanismos suficientes de denúncia e que qualquer estudante que pressione, humilhe, exerça algum tipo de poder sobre o outro seja punido por lei, tal como acontece em todos os outros espaços do dia-a-dia, os alicerces desta prática desabam. Por outras palavras: no dia em que a praxe não for sexista, machista, hierárquica, homofóbica, violenta, deixa de ser praxe.

O desconforto sentido entre aqueles que ainda defendem este tipo de práticas reside no facto de o tema ter-se tornado um debate público, deixando de ser tabu. No meio de todo este debate, desde as tentativas de defender o indefensável, continuamos todos à espera de alguém que defenda abertamente o conteúdo do tal “Manual de Sobrevivência do Caloiro” da praxe da FCUP. Ao contrário do que possa parecer, este não é um debate sobre proibições, é um debate sobre liberdades: a maior de todas é poder escolher viver no século XXI.

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