Jorge Pinheiro: um clássico contemporâneo em Serralves

A exposição Jorge Pinheiro: D’Après Fibonacci e as coisas lá fora, projectada por Pedro Cabrita Reis, é o primeiro momento de grande visibilidade pública desta obra desde a retrospectiva que a Gulbenkian lhe dedicou há 15 anos.

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Pedro Cabrita Reis, à direita, com Jorge Pinheiro numa das salas da exposição dedicada à obra deste artista em Serralves Nelson Garrido
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É possível que muitos dos que visitarem por estes dias a exposição Jorge Pinheiro: D’Après Fibonacci e as coisas lá fora, inaugurada este sábado em Serralves, se perguntem por que é que o Museu de Arte Contemporânea só agora mostra em profundidade a obra de um artista português de tão evidente relevância e influência. Mas momentos como este nem sempre são, como poderíamos pensar, resultado de aturadas planificações a longo prazo. Podem acontecer bastante por acaso. Se não se tivesse dado a coincidência de a directora artística de Serralves, Suzanne Cotter, ter tido assuntos a tratar com o artista Pedro Cabrita Reis no mesmo dia em que acabara de ver, numa galeria de Lisboa, alguns trabalhos em papel de Jorge Pinheiro, não teríamos agora esta exposição no Porto.

“Quando nos encontrámos, a Suzanne referiu-me o prazer que tinha tido em ver os desenhos do Jorge Pinheiro e eu falei-lhe do meu encanto de muitos anos com a obra dele, e devo tê-lo feito de modo tão eloquente que ela, muito tranquilamente, me disse: 'Bom, então se calhar, nesse caso, vou convidá-lo a organizar uma exposição do Jorge Pinheiro em Serralves'”, conta Cabrita Reis. “Claro que respondi que o faria com todo o gosto. Foi só isto”.

Organizada em estreita cumplicidade com o próprio Jorge Pinheiro, esta exposição é assim, mais do que um trabalho convencional de curadoria, uma coisa bastante menos comum: o resultado da persistente admiração de um artista pela obra de outro artista.

“Esta é uma obra crucial para o entendimento da arte portuguesa nos anos 60 e 70, disse ao PÚBLICO Cabrita Reis, para quem os artistas portugueses mais importantes dessas décadas são Jorge Pinheiro, Ângelo de Sousa e Álvaro Lapa. Um trio a que soma ainda Joaquim Bravo. “É um triângulo de quatro vértices”.

Mas o que o entusiasmou a projectar esta mostra, cujo desenho expositivo é da autoria do arquitecto Eduardo Souto Moura, foi a convicção de que “se perderam de alguma forma, ou não são hoje suficientemente ricos e produtivos, os laços que a obra de Jorge Pinheiro tem com a contemporaneidade”. É essa lacuna que se propõe colmatar, dando-a ver a “artistas mais jovens, que têm fontes de informação ilimitada, mas que nem sempre acedem facilmente a coisas que têm junto de si”. E faz votos de que Serralves venha no futuro a ampliar a outros autores esse “processo de reavaliação da arte portuguesa dos anos 60 e 70”.

Incluindo cerca de 80 peças de pintura, escultura e desenho, muito centradas num período que vai de meados dos anos 60 ao fim da década seguinte – tudo o que fundamenta esta obra está já presente na “intensidade e riqueza destes 15 anos”, argumenta Cabrita Reis –, a mostra de Serralves complementa-se com uma segunda exposição da obra Jorge Pinheiro, organizada pelo poeta e crítico de arte João Miguel Fernandes Jorge, que abrirá no próximo sábado em Lisboa, na Fundação Carmona e Costa, e será quase exclusivamente dedicada aos seus desenhos sobre papel, a disciplina hoje mais praticada pelo artista, que aos 86 anos se mantém em plena actividade.

Um braço caído

O conceito que orientou as escolhas de Cabrita Reis está já sugerido no título que concebeu para a exposição: D’Après Fibonacci e as coisas lá fora. “A primeira parte constata a importância que Jorge Pinheiro atribui às regras de Fibonacci, e a outras fórmulas de pensamento, na construção da sua obra, mas também quis dar a noção de que ela não é só isso, e ‘as coisas lá fora’ falam da presença do mundo nos seus trabalhos”.

Presente na natureza, das espirais de certos moluscos à dentição humana, a sequência de Fibonacci, uma série de números inteiros, na qual cada novo número é soma dos dois anteriores, interessou artistas de diversas disciplinas, do compositor Béla Bartók ao arquitecto Le Corbusier, e percorre boa parte da obra de Jorge Pinheiro. “Não informa só a sua pintura abstracta, mas talvez de forma ainda mais obsessiva a pintura dita figurativa”, nota Cabrita Reis, defendendo que um mesmo pensamento estrutura toda a sua criação.

 Essa distância aparente entre a obra abstracta e as recorrentes emergências do figurativo está lapidarmente representada numa sala onde Cabrita Reis decidiu colocar apenas duas peças frente a frente. De um lado, os visitantes são confrontados com a pintura a óleo Ao povo alentejano, de 1980, onde se vê um corpo morto, com o braço caído. “É a Guernica dele, uma obra que se enraíza em toda a história da pintura europeia, do Marat Assassiné, de David, onde também aparece aquele braço perdido, que é a morte, às Descidas da Cruz e às Piedades”, diz Cabrita Reis, explicando que o artista pintou esta tela “na fase de desocupação da reforma agrária, quando a GNR interveio de forma brutal e acabou por assassinar dois jovens trabalhadores agrícolas”.

Defronte desta obra, “de uma figuração quase obsessiva no seu rigor”, a Partitura para um canto livre, de 1976, constituída por sete estantes musicais com as respectivas pautas, constitui o momento em que Jorge Pinheiro esteve mais perto de produzir uma obra conceptual. “É na conversa, ou no silêncio partilhado entre estas duas obras, diametralmente opostas na sua materialização, que se enuncia a equação da obra de Jorge Pinheiro”, propõe Cabrita Reis.

Ao povo alentejano assinala também a fortíssima dimensão política da obra do pintor, igualmente presente numa outra sala onde se mostram trabalhos figurativos que têm no pão o elemento comum e central.  

Um artista de artistas

Mas a visita à exposição começa ainda no átrio de Serralves, onde se podem ver três esculturas, umas delas construída expressamente para esta exposição. Intitulada Babel, trata-se de uma peça de grandes dimensões que utiliza tubos de ferro lacado e chapas de aço espelhadas para criar uma multiplicação de reflexos. “Os artistas dos anos 60 e 70 estão cheio de projectos e maquettes de peças que ambicionariam poder fazer a uma escala diferente, e esta escultura, que o próprio Jorge Pinheiro escolheu e permitiu que fosse construída à escala que considera perfeita, é um exemplo disso”.   

Organizada em núcleos de trabalhos com alguma identidade formal – excepção feita à já referida sala em que se quis acentuar o contraste entre Ao povo alentejano e Partitura para um canto livre –, a exposição inclui um importante conjunto de esculturas dos anos 60, de sedutora dimensão lúdica, que Cabrita Reis classifica como “esculturas de pintor”, já que, argumenta, a ruptura consiste aqui em “tirar a pintura da parede e trazê-la para o espaço, o que não era coisa pouca no Portugal da época”. Numa altura em que “a estatuária era a prática escultórica mais corrente” no país, estas peças de Pinheiro eram, defende, “absolutamente revolucionárias”.

Embora o desenho em papel esteja essencialmente concentrado na exposição de Lisboa, foi também seleccionado um pequeno conjunto de desenhos que integram o acervo de Serralves, e que em alguns casos parecem prenunciar obras de pintura e escultura expostas noutras salas. Numa delas, a que Cabrita Reis chama “a sala dos mapas”, reúnem-se trabalhos em que “um desenho quase científico se combina com manchas de uma qualquer geografia imaginária”. É, para o organizador da mostra, a fase mais “poética” e “enigmática” da obra de Jorge Pinheiro.

E a exposição desemboca numa sala à qual se acede descendo uma larga rampa, um espaço que Cabrita Reis considera particularmente “mágico” no museu desenhado por Siza Viera, e onde fez questão de concentrar “o Jorge Pinheiro mais emblemático, mais perfeito, as obras que têm essa mesma aura que nos leva aos museus para ver pinturas com 400 ou 500 anos”. São pinturas, e algumas esculturas, dos anos 70, incluindo várias obras a tinta acrílica sobre tela do ciclo Mensagem Inequívoca.

Um dos célebres Quatro Vintes, como se chamou o grupo que criou nos anos 60, no Porto, com Ângelo de Sousa, Armando Alves e José Rodrigues, Jorge Pinheiro, nascido em Coimbra, em 1931, e há muito radicado em Lisboa, tem uma sólida carreira pública como artista e está representado nas principais colecções institucionais portuguesas, com destaque para a Gulbenkian, que possui um importante conjunto de obras suas e lhe dedicou, em 2002, uma grande exposição antológica. Mas é além disso, ou é sobretudo, aquilo a que Cabrita Reis chama “um artista de artistas: alguém com um percurso excepcional, raríssimo, e que é admirado e estudado pelos seus pares”.

E o que mais o fascina neste pintor e escultor de uma geração anterior à sua é o facto de ver nele “um artista clássico”, o que em nada contradiz “a total abertura de Jorge Pinheiro à contemporaneidade”. Mas “na sua ética, no seu dispositivo de pensamento, na sua relação com os materiais e com a disciplina das diversas artes, ocupa uma posição claramente clássica”, diz Cabrita Reis, que confessa: “Eu tenho a ambição de um dia vir a ser considerado um artista clássico, ele, aos meus olhos, já o é”. 

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