Ensino e investigação na universidade

Não se pode admitir que as unidades de investigação sejam espaços onde todos os anos se discute como sobreviver com dignidade.

Todos sabemos que é um velho problema do Ensino Superior a conjugação do ensino e da investigação. É uma questão antiga, que se procurou discutir sobretudo desde o Iluminismo, cuja história e interpretação quanto ao “presente” procurei também realizar recentemente, não sem antes o ter feito em várias ocasiões como historiador e como universitário interventivo. Vem esta nota pessoal a propósito de um artigo, muito crítico em relação às universidades, publicado neste jornal (08.08.2017), por Nuno Peixinho, investigador-bolseiro no Observatório Astronómico da Universidade de Coimbra, intitulado “Crepúsculo dos reitores ou como se investiga às marteladas”.

Pertenci à geração de “privilegiados” de que fala — docentes e, ao mesmo tempo, investigadores que iniciavam uma carreira como “assistentes estagiários” e que iam até “professores catedráticos”, desde que ultrapassassem todos as provas pedagógicas e científicas — e, como colaborei no início das avaliações das universidades e das unidades de investigação e desenvolvimento (I&D), estive no senado da universidade durante mais de dez anos e fui pensando nas diversas situações ao longo de cerca de 40, julgo poder dar algum contributo, ainda que interrogativo, para discutir a questão tão dramática que se vive nesse âmbito. Situação crítica, apesar dos auto-elogios das universidades, à procura dos seus lugares nos rankings.

A universidade sempre conviveu mal com a tal conjugação do ensino e da investigação, como se pode ver através de muitos debates que se deveriam recordar e que hoje se realizam não tanto por processos tradicionais, mas em redes sociais. Por isso o artigo do PÚBLICO, pelo seu tom dramático e a sua frontalidade, acabou por me motivar mais uma vez. Penso, de resto, que as universidades não debatem livremente os seus problemas nos seus órgãos de administração porque a política de ensino, sobretudo depois de vigorar o Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior, de 2007, transformou-as em lugares de competição, onde os órgãos, que deveriam ser de discussão aberta, são meras instituições de “gestão” — que o serão ainda mais numa lógica da universidade-fundação —, afastando professores, investigadores, estudantes e funcionários de se interrogarem sobre os rumos que seguem.

Mas vejamos o problema mais de perto, nesta posição de um aposentado que espera não ter envelhecido à sombra de uma carreira cumprida com sacrifício, muita paixão e bastantes desilusões. Uma pergunta me ocorre desde já: teria sido possível consolidar duas carreiras distintas, de docentes e investigadores?

Quando surgiu a primeira legislação de uma carreira de investigação (D.L. n.º 415/80), sobretudo nas faculdades não laboratoriais (muito antes do “processo de Bolonha”, que considero a raiz de muitos males), e quando o doutoramento era um grau essencialmente procurado pelos docentes — que faziam dele a prova da sua vida, não porque a considerassem a sua “obra-prima” mas porque lhes dava a possibilidade de iniciarem então uma carreira com estabilidade —, houve uma interrogação fundamental: será que se justificam duas carreiras distintas, tendo em conta que o professor tem de ser um investigador, numa interligação exigível da ciência e do ensino? O professor ensina e investiga. E o investigador? Só investiga? Como?

Essas interrogações fizeram com que a maioria dos investigadores das faculdades de ciências sociais e humanidades, ao realizarem o seu doutoramento, pedissem para passar à carreira docente. Mesmo em áreas de ciências laboratoriais, os casos que então conheci — ressalvando outras situações — não foram muito abonatórios do interesse de então criar uma pura carreira de investigador nas universidades. O meu mestre Silva Dias bateu-se por uma carreira dupla e flexível, ou seja, quando um professor sentisse que teria um projecto intenso de investigação — recordo que a investigação em ciências sociais e humanidades, apesar de poder assumir a forma de projectos de grupos, até interdisciplinares, tem um carácter pessoal, e lembro que só tarde se institucionalizaram as chamadas “licenças sabática”— passaria à carreira de investigador, para voltar depois à carreira docente. Mas nada conseguiu, evidentemente.

Os tempos hoje serão outros, mas não sei se melhores. Os professores — contra a indicação dada pelas primeiras equipas de avaliação das universidades — passaram a ter muitas horas de ensino por semana em várias cadeiras (além de uma burocracia intensa) e, assim, têm cada vez mais dificuldade em ser também investigadores, pelo que há o risco de os docentes se transformarem em simples “dadores de aulas” e as universidades em verdadeiros “liceus superiores”. Por sua vez, fora ou dentro das universidades, em boa hora multiplicaram-se as unidades de I&D, onde tem espaço a investigação por grandes projectos e até o ensino científico. Mas ter-se-á resolvido o problema da “carreira” (de novo renovada através do D.L. n.º 124/99), que teria de supor uma outra organização e uma estabilidade profissional e não uma situação provisória?

Como se sabe, multiplicaram-se as bolsas de pós-doutoramento e mesmo lugares de investigadores efémeros, o que levou alguns a pedirem sucessivas prorrogações sem nunca terem um lugar estável, “de carreira”, mas também, em muitos casos, a não cumprirem integralmente os seus planos de pesquisa. Assim, os investigadores deste país, e por certo de muitos outros, são vítimas da situação mais instável que existe, de acordo, aliás, com as regras e o vocabulário do capitalismo restaurado, onde surgem conceitos que se tornaram mitos, como “flexissegurança” e “universidade-empresa”. A par disso, na carreira docente — pondo de parte o caso de professores que foram afastados de forma ilegal ou ilegítima, numa lógica de concorrência — faltaram verbas e vontade para criar vagas nos diversos graus da docência e mesmo para abrir o ensino a áreas novas, pelo que em certas situações dificilmente os professores conseguem atingir o topo da carreira.

Mas será que a abertura de novos lugares de investigação pelo D.L. n.º 57/2016, corrigido pela Lei n.º 57/2017, resolve o problema institucional e pessoal?

Parece-me fundamental criar carreiras estáveis onde o ensino e a investigação se conjuguem, onde as provas sejam públicas e formais e não resultem tanto do papel da “descoberta” de projectos em que a rentabilidade económica e o impacto “público” (muitas vezes mais aparentes do que reais), por vezes de ciência duvidosa, se impõem, à sombra de conceitos como “inovação” e “empreendedorismo” (palavras fortes deste “novo vocabulário”, num tempo de neo-nominalismo). Claro que a Ciência supõe ciências muito diferentes, que terão necessariamente de supor situações laborais distintas (a “diferença” deve ser sempre considerada um elemento essencial). Porém, há aspectos comuns e não é aceitável que, em qualquer situação, se desconsidere a continuidade de equipas de investigação e a segurança de vida que cada um deve ter, como não se pode admitir que as unidades de investigação sejam espaços onde todos os anos se discute como poderão sobreviver com dignidade. Neste como noutros casos, o trabalho precário tem mascarado e encoberto uma situação de desemprego e subemprego, assim como a artificialidade de algum “sucesso” das instituições.

Avançando mais em pormenor, a referida legislação, nebulosa se não contraditória, deixa todos — reitores de universidades públicas, unidades de I&D, bolseiros e investigadores — cheios de dúvidas. Os reitores porque são obrigados a vir a criar quadros de investigação, ou de docência, para resolverem problemas de emprego, e os centros de pesquisa (nomeadamente os de ciências sociais e humanidades) porque têm de encontrar funções de horário pleno para investigadores até aqui com projectos temporários de investigação pessoal, o que constitui um grande desafio, com aspectos positivos e muitas dúvidas quanto à realização. E os investigadores e bolseiros? Por um lado, saliente-se que aqueles que esgotaram as bolsas, por melhor currículo que tenham, parece — de modo injusto — não poderem ser integrados no grupo a quem preferencialmente se destinarão os concursos (Lei n.º 57/2017, art. 23.º, 1). Mas, por outro lado, os actuais bolseiros nunca poderão ter a certeza que são contratados, dado que os concursos, com “selecção internacional”, são abertos a todos os “doutorados nacionais, estrangeiros e apátridas” (D.L. n.º 57/2016, art. 12.º, e lei n.º 57/2017, art. 10.º), podendo ser ultrapassados, naturalmente, por melhores concorrentes. E mesmo que sejam contratados, qual o seu futuro depois de cumprirem mais seis anos (no máximo) de contrato?

Todos afinal nos interrogamos perante semelhantes condições, mesmo que possamos acreditar na bondade dos seus princípios. Mas talvez eu, aposentado há dez anos embora sempre ao serviço da universidade, esteja longe da realidade e alguém me venha esclarecer tantas dúvidas.

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