A noite será para dançar ou não será

Le Syndrome Ian, que esta sexta-feira chega ao Rivoli, é o regresso de Christian Rizzo ao tempo e ao lugar em que se definiu, possuído por Ian Curtis, como bailarino e como coreógrafo. O que acontece noite após noite às escuras na pista, defende, faz parte do ADN da dança contemporânea.

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São nove bailarinos uniformizados pelos figurinos de Laurence Alquier e intermitentemente iluminados pelas esculturas de luz de Caty Olive marc coudrais

Christian Rizzo (Cannes, 1965) lembra-se até hoje da primeira vez que entrou numa discoteca – foi em 1979 e só de lá saiu verdadeiramente em 2008. Noite após noite após noite após noite, ano após ano após ano após ano, enquanto o disco passava a new wave e a new wave passava a house e a house passava a drum’n’bass e o drum’n’bass passava a electro, enquanto o sexo se transformava em sida e as drogas se tornavam sintéticas, o bailarino e coreógrafo francês foi muitas vezes o último a sair, não só dessa discoteca fundadora em Londres onde ouviu pela primeira vez a voz “eléctrica (e epiléptica)” de Ian Curtis como, depois, nos anos dourados do mítico Palace, em Paris (sobre o qual Roland Barthes escreveria em 1978, no ensaio Au Palace ce soir: “Não era um clube como os outros, reunia num só lugar prazeres normalmente dispersos: o do teatro, que suscita o olhar; a excitação do moderno (…); a alegria da dança, o encanto de possíveis encontros (…), todo um espectro de sensações destinadas a fazer as pessoas felizes no espaço de uma noite”), e, ainda mais perto, no lugar onde a noite de Lisboa mudou para sempre (perguntem-lhe porque é que a companhia que fundou em 1996 se chama l’association fragile e ele lá explicará, como explicou ao Ípsilon, que o “e” está lá “para afrancesar” o nome do bar do Bairro Alto onde teve uma vida portuguesa…).

Foi lá atrás, esse passado, e no entanto está implícito em tudo o que o actual director do Centre Chorégraphique National de Montpellier Languedoc-Roussillon veio a fazer depois, das artes visuais à música, da moda à criação de figurinos – tal como ele quis tornar explícito, todos estes anos depois, em Le Syndrome Ian, a peça cheia de som e de fumo (e também cheia da solidão do fim da noite quando lá fora já é dia, e do pânico da manhã seguinte) que há um ano estreou na Bienal de Lyon e que esta sexta-feira traz ao Rivoli, abrindo a temporada do Teatro Municipal do Porto e fechando o tríptico que o levou a explorar as relações de tutela e de contaminação entre as danças anónimas, vernaculares, e as danças de autor.

Tal como o que lhe aconteceu pessoalmente noite após noite em discoteca após discoteca não ficou na pista (no caso de Christian Rizzo, inscreveu-se numa biografia pessoal que é paralelamente um corpo de trabalho artístico perfeitamente caucionado), também colectivamente as práticas desclassificadas, e às vezes quase secretas, do clubbing se infiltraram na gramática da dança contemporânea – ao ponto de até linguagens como o voguing e o twerk, que nos tempos pré-históricos da segregação homossexual (foi há quê, 30 anos?) pareceram para sempre condenadas à clandestinidade do ballroom, se terem tornado mainstream. Três anos e três peças depois – antes de Le Syndrome Ian houve a visita, para ele muito contranatura, às danças comunitárias de raiz folclórica de D’après une histoire vraie (2013) e a visita às danças de casal, com passagem pelo salão, de Ad Noctum (2015) –, o coreógrafo francês confirmou a sua intuição inicial, uma intuição com muitas noites sem dormir em cima, de que nada separa verdadeiramente as danças vernaculares das danças não-vernaculares: “É uma dupla história, a da dança contemporânea – como na molécula do ADN, são duas hélices que se cruzam constantemente e avançam em paralelo. Para mim, a diferença não é de hierarquia, é só de contexto.”

Mas talvez ainda seja cedo para essas epifanias (até porque houve outra antes): é 1979, estamos em Londres, e um Christian Rizzo de 14 anos entra pela primeira vez numa discoteca para nunca mais querer de lá sair. Entremos com ele.

Alegria e negrume

Agora que aprendeu a viver de dia “e não é nada mau” – mas até se tornar no prazer que é hoje, admite, “foi um grande choque…” –, Christian Rizzo tem outra maneira de encaixar a noite já bastante distante em que viu uma multidão a transfigurar-se, e não apenas fisicamente, sob a influência de Ian Curtis, a mesma noite que agora de certo modo reconstitui em Le Syndrome Ian: era uma multidão que vinha do brilho incandescente, do groove sem ângulos rectos e da frontalidade sexual do disco, e que o apocalipse intermitente das luzes strobe e a gravitas daquela voz acabavam de atirar sem grandes preliminares para um inferno repressivo e depressivo não menos eléctrico, nem menos dançável. “Era a minha estreia, e eu tinha uma ideia de discoteca que tinha a ver com brilhos e com dourados, com divertimento e descontracção; de repente entra aquela música e ouve-se uma voz do além-túmulo, nada batia certo. Mas foi como se tivesse ficado possuído desde essa altura: a voz do Ian Curtis inculcou em mim, de uma forma que eu diria patológica, esse paradoxo de ser possível dançar ao mesmo tempo, com o mesmo corpo, uma grande alegria e um grande negrume”, conta ao Ípsilon.

A peça em que quis contar essa história tão pessoal quanto colectiva tem ambos. E tem também aquilo que sempre lhe pareceu mais fácil à noite do que durante o dia: “À noite inventamo-nos – a dimensão da metamorfose sempre foi muito importante para mim. E as danças de discoteca, por serem uma actividade nocturna, e portanto escondida, sempre tiveram muito a ver com isso. No meu caso, a discoteca era também o lugar onde se cruzava tudo o que me interessava: a dança, a música, a moda.” Mas é diferente olhar para ela agora, como bailarino e como coreógrafo, à procura de um vocabulário e de uma gramática que possam pôr uma peça com nove bailarinos a falar articuladamente em cima de um palco: “Há muitas questões em jogo no clubbing: questões de comunicação física em espaços muito escuros e muito reduzidos, questões de afirmação pessoal e de relação com o grupo, questões de gestão do nosso olhar e da recepção do olhar do outro… E também questões artísticas, porque as danças de discoteca são uma actividade criativa, mesmo que não tenham por trás a vontade consciente de montar um espectáculo.”

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marc coudrais

Para fazer raccord com o tempo e com o lugar em que esta história começou, Christian Rizzo foi buscar praticamente tudo – menos a banda-sonora propulsora dos Cercueil (Pénèlope Michel e Nicolas Devos) – a essa noite de 1979 em que assistiu ao choque entre “as formas redondas e hiper-sexualizadas” do disco e “os corpos mais eléctricos, muito quebrados, quase abstractos” da new wave, corpos que dançavam a partir da exposição da sua própria fragilidade. Na verdade, diz, não é só Le Syndrome Ian que vive desse choque: “Toda a minha dança vem da colisão entre esses dois estados corporais. É uma autoficção, claro, mas acho que me inventei como coreógrafo nesse momento em que me recusei a escolher entre o disco e a new wave.”

Le Syndrome Ian parte desse momento e dos gestos intemporais que o coreógrafo lá foi resgatar (“aquele balançar dos pés da esquerda para a direita, repetidamente, por exemplo”), e a que a simples transposição para um palco desimpedido dá uma escala que nunca poderiam atingir numa discoteca, para atravessar, da euforia à ressaca, todas as vidas e todas as mortes que podem caber numa noite na pista. Tinha de haver, e há, fantasmas a assombrar este palco onde os nove bailarinos uniformizados pelos figurinos de Laurence Alquier e intermitentemente iluminados pelas esculturas de luz de Caty Olive recriam não uma noite em particular mas muitas noites genéricas, com os seus genéricos (ou não tão genéricos) pesadelos cheios de desaparecidos em combate: “As discotecas são lugares de vida mas também são lugares de morte, como ainda recentemente em Paris e em Orlando, com os atentados. Eu estava lá, lembro-me de quando começámos a ver nas discotecas pessoas já doentes, porque apesar de tudo era preciso continuar a dançar. Também me lembro de certas noites em Londres em que seguramente mais de 95% das pessoas estavam em ecstasy – embora seja preciso reconhecer que as drogas sintéticas também nos deram as raves e as festas de 24 horas a dançar sem parar.”

Também foi disso que se lembrou quando estava a escrever esta peça: sempre dançámos, sempre dançaremos. “A Manchester em que uma figura como o Ian Curtis apareceuuma figura que não podia verdadeiramente dançar, por causa da epilepsia, mas que fazia dançar os outros – era uma cidade em profundíssima crise social e económica. Hoje, apesar do avanço ultraliberal, do negrume geral, do terrível estado do mundo, as pessoas continuam a dançar”, conclui Christian Rizzo. Talvez o apesar esteja a mais – porque foi exactamente num país em crise que ele próprio se viu a dançar até de manhã pela última vez há dois anos, não muito longe do palco onde esta sexta-feira nos mostrará que a noite será para a dançarmos até ao fim ou não será.

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