Tancos furtado? Ninguém à porta

O que o ministro nos veio dizer é que, num episódio tão preocupante, é normal ele ainda não saber nada.

Costuma dizer-se que “quem diz a verdade não merece castigo”. Mas como este adágio popular comporta excepções em domínios como o Direito Penal, em que a confissão integral e sem reservas, sendo um factor de medida concreta da pena de sinal atenuante para o arguido, não o isenta de condenação, em política há verdades que, sendo-o, suscitam ao menos perplexidade e a verificação de que “o rei vai nu”.

Em recente entrevista à TSF e ao DN, o ministro da Defesa Nacional veio dizer que, após os acontecimentos de Tancos, em finais de Junho, na verdade estamos na mesma. Após o mea culpa das chefias militares, de uma inaudita conferência de imprensa das chefias dos três ramos das Forças Armadas e do poder político, capitaneado por António Costa, Azeredo Lopes veio confirmar-nos, com aparente candura, que, no essencial, continua “em branco” quanto aos gravíssimos acontecimentos de Tancos. Em qualquer democracia responsável já haveria um completo apuramento do que sucedeu e de eventuais responsáveis. No nosso sui generis regime, tudo é diferente.

É evidente que só o resultado do inquérito criminal pode concluir se existiu ou não furto qualificado e, aí, as eventuais demoras só são assacáveis ao Ministério Público. O que já roça o cenário da Alice no País das Maravilhas é o ministro que tutela esta área de governação não saber se o sistema de videovigilância estava na altura ou está agora a funcionar e, pasme-se, se o mesmo ocorre nas instalações do próprio ministério. Azeredo Lopes, por quem nutro sincera admiração académica e que demonstrou já coragem política ao afrontar interesses corporativos, revelou elevada falta de habilidade para lidar com a questão. A ser como diz, um responsável político nunca o pode admitir em praça pública. Estamos apenas a falar de uma das funções de soberania da República e que é uma das tarefas fundamentais que o Estado se dá a si mesmo, nos termos da Constituição.

Não quer o ministro embandeirar em “teses de conspiração”, mas lá vai dizendo que o material guardado nos paióis pode nem sequer ter sido furtado, mas a sua falta resultar de uma ausência de controlo do que aí é conservado, podendo até ter sido utilizado em exercícios militares sem se ter procedido ao respectivo abate cadastral. Se é exacto que a responsabilidade directa, em tal hipótese, é das chefias militares, o certo é que a responsabilidade política é ministerial e Azeredo Lopes não se pode comportar como um qualquer CEO. Sei bem que cada vez mais se pretende que a gestão da coisa pública se assemelhe a uma vulgar empresa. Mas não o é. Sobretudo no que tange à Defesa nacional.

Por rectas contas, o que o ministro nos veio dizer, com um ar plácido e como se aludisse à maior normalidade do mundo, é que num episódio tão preocupante e que pode colocar armas em circuitos ilegais, numa época em que a ameaça terrorista paira sobre todas as latitudes, é normal ele ainda não saber nada. O que demonstra a nossa capacidade secular de normalizar o anormal, comunitarizando as responsabilidades até ao ponto em que elas se diluem tanto que “a culpa morre solteira”.

Como cidadãos temos o direito de saber o que sucedeu em Tancos com todos os pormenores, nos limites do segredo de Estado. Não adianta, depois, no resto da entrevista, uma prestação que considero boa em domínios como, p. ex., as explicações da Lei de Programação Militar e da diminuição (ou ausência) de cativações orçamentais na Defesa para 2018. Um ministro que não sabe o que se passa na sua casa perde credibilidade para tudo o mais. Mas um responsável que se não mostra preocupado com isso e que, ao que parece, considera normal que Tancos seja ainda um OVNI ou que mecanismos básicos de vigilância de áreas sensíveis como as de conservação de armas funcionem ou não, roça o trágico-cómico. Este é, para mim, o ponto mais saliente da sua entrevista — a naturalidade com que afirma o seu desconhecimento, numa espécie de “falta de consciência da ilicitude” (política). A máxima socrática do “só sei que nada sei” é uma prova de humildade intelectual que muito prezo, mas, neste específico caso e na gestão pública, arrisca-se a ser apelidada de incompetência.

Repare-se, por fim, que as declarações em causa não foram “infelizes”, mas parecem corresponder àquilo que Azeredo Lopes efectivamente considera adequado sobre Tancos. Não foram afirmações que saíram mal, antes um credo do modo como o ministro encara as suas funções. Assim sendo, nada mais há a dizer, excepto ressaltar que, por muito que se repita que o anormal é normal, a realidade impõe-se com a certeza de que depois de segunda-feira virá a terça. Não se leia aqui qualquer apoio ao regresso de Cavaco Silva ao mundo dos vivos, mas a verificação de que a realidade política é sempre mais imaginativa que a realidade do dia-a-dia.

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