Britain First?

May representa um conservadorismo antiliberal que não é favorável à imigração pelas mesmas razões de Trump.

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1. Já nos chegava a “America First” de Donald Trump, com todas as suas consequências num mundo em ebulição. Agora, temos direito a uma versão mais sofisticada da mesma coisa no Reino Unido e na sua corrida desgovernada em direcção ao “Brexit”. “America First” significa várias coisas. Rever quase todos os acordos internacionais, sejam eles comerciais ou de segurança, alegadamente porque a América está farta de pagar o desenvolvimento e a segurança internacionais. Mas também mudar as regras do jogo internas, beneficiando os trabalhadores e as empresas americanas, expulsando os ilegais sob qualquer pretexto (o caso dos “Dreamers” é paradigmático) e tornando mais difícil a imigração para os EUA.

Apesar do seu comportamento errático e da sua manifesta incapacidade para exercer as funções para as quais foi eleito, Trump representa uma corrente política nacionalista e isolacionista, na sua versão mais radical. A sua ideologia, mesmo que sujeita às contradições inerentes ao personagem, é a de Steve Bannon. Os danos desta viragem política são, por vezes, atenuados pela força das instituições americanas e também pelos responsáveis pela Defesa e pelos Negócios Estrangeiros, James Mattis e Rex Tillerson, que tentam manter algumas pontes com o mundo exterior. Entre o isolacionismo ou a ameaça de recurso à colossal força militar da superpotência que resta, a vida internacional entrou em turbulência sem que haja um centro (os EUA e os seus aliados europeus) que tente defender as bases da ordem internacional liberal criada pela América a seguir à II Guerra.

2. Muita gente tentou minimizar o célebre documento secreto que o Guardian divulgou na semana passada sobre a política de imigração britânica depois da saída da União Europeia, no que refere aos cidadãos europeus. Argumentou-se que era datado, que já tinha sido corrigido, etc.. Não vale a pena deixarmo-nos levar por esta ladainha. Ele não existe por acaso. Foi o resultado dos anos que Theresa May passou no Ministério do Interior, durante os governos de David Cameron, representa aquilo que a primeira-ministra britânica pensa e explica a razão pela qual o “Brexit” tem no seu âmago a imigração. Seja ela do resto do mundo ou dos cidadãos da União Europeia.

May defende um conservadorismo a milhas de distância daquele que o anterior primeiro-ministro britânico defendia, antes de ceder ao lado mais antieuropeu e xenófobo do seu partido, convocando um referendo que lhe foi fatal. Cameron era “neto” de Margaret Thatcher e da sua visão de um país aberto ao mundo e da liberdade dos mercados (Blair foi o seu sobrinho afastado, mas não muito). Thatcher queria outra Europa, não queria sair da Europa. Foi uma acérrima defensora do Mercado Único.

May representa um conservadorismo antiliberal, que não era nem é favorável à imigração pelas mesmas razões de Donald Trump: tiram os empregos aos verdadeiros britânicos, fazem baixar os salários dos empregos menos qualificados. Como Trump, mas de outra maneira, já anunciou que o investimento estrangeiro em domínios estratégicos tem de ser controlado. Vai apresentar brevemente uma “estratégia industrial” com este propósito. Critica a globalização, considerando que “não há essa coisa a que chamam de cidadão do mundo”, que “não é cidadania nenhuma”.

Lendo com atenção o documento “confidencial”, está lá tudo. É um somatório de medidas de dissuasão para quem queira viver e trabalhar no Reino Unido. Se for pouco qualificado, o tempo máximo de permanência seriam dois anos. No caso da mão-de-obra qualificada, esse tempo poderia ir até cinco anos. As empresas passam a ter restrições pesadas para contratar imigrantes. Terão de justificar que não há mão-de-obra nacional para preencher essas vagas. Apenas o cônjuge e os filhos menores podem juntar-se a quem for para lá trabalhar. O acesso aos benefícios sociais será limitado, dependendo da autorização de residência. E tudo isto num país que mantém uma baixa taxa de desemprego.

A natureza ideológica está lá e chama-se nacionalismo. “Britain First.” Uma forma de trumpismo defendida por gente mais preparada, que frequentou Oxford, Cambridge e até Eton. A propósito, o documento também prevê novas e pesadas restrições para quem queira ir estudar nas universidades britânicas, que ainda hoje atraem muita gente e que foram, como a Ivy League americana, um benefício enorme para os dois países. É esta a força de May, apesar da sua imagem de fraqueza. Sabe onde quer chegar. É a sua matriz para o “Brexit”, por mais que a desorientação persista no Governo britânico, incapaz de definir uma estratégia negocial com Bruxelas. Não é a soberania de Westminster ou a economia. É a rejeição dos outros, incluindo os europeus. A morte definitiva do thatcherismo, como Trump é o fim da era Reagan para os republicanos, que já tinha criado raízes com o Tea Party. Há conservadores de ambas as tendências no Governo. O resultado final, ainda ninguém sabe ao certo qual será. O Labour está demasiado dividido para apresentar uma alternativa. Ainda não disse uma palavra sobre este embaraçoso documento.

3. Nem o Governo nem a oposição estavam preparados para uma vitória do “Brexit”. São mais de 40 anos de vida em comum que é preciso desfazer. Houve erros de cálculo que deixam o actual Governo numa situação politicamente muito difícil. Primeiro, os conservadores acreditaram que a saída do Reino Unido seria saudada com entusiasmo, pelo menos em alguns países de Leste cujas elites também gostam de navegar nas águas do nacionalismo. Foi um engano. Em Budapeste ou em Varsóvia, o dinheiro ainda fala mais alto. Contavam com a moderação de Angela Merkel, pouco interessada na saída do Reino Unido com a sua defesa do comércio livre para equilibrar a pulsão mais proteccionista da França. Enganaram-se. Merkel teve uma única preocupação: manter os outros 27 unidos. Para a Alemanha, a integração europeia continua a ser o ar que respira. Na campanha eleitoral alemã, a palavra “Brexit” desapareceu. Acreditaram que teriam em Washington uma alternativa. Têm Trump, que não perde uma hora de sono com o destino do Reino Unido. Querem continuar a ser um país com uma dimensão global, mas a agenda internacional não lhes é propícia.

Apenas um exemplo. Quando, recentemente, May foi a Tóquio para tentar abrir caminho a um acordo de comércio que compense a sua saída da União, Shinzo Abe tinha na cabeça uma única preocupação: a Coreia do Norte. Antes, May tinha visitado a Casa Branca com o mesmo objectivo. Trump prometeu-lhe um “maravilhoso” acordo comercial. Nunca mais deve ter pensado no assunto. Em suma, até agora, nada ou muito pouco do que os defensores do “Brexit” prometeram aos britânicos aconteceu. Um diplomata europeu dizia recentemente que nunca tinha visto um país optar deliberadamente pela diminuição da sua influência no mundo. Como escreveu Cabrera Infante, que viveu 40 anos em Londres, vê-se o mundo inteiro de uma esplanada de Leicester Square. Muitos dos apoiantes do “Brexit” vivem em lugares onde não há imigrantes.

4. O que ganha Londres com a saída? Quase nada, a não ser menos imigrantes. O que ganha a Catalunha com a independência? Nada, a não ser problemas de toda a ordem, incluindo a saída da União Europeia, a perda de riqueza, o isolamento. Para já não dizer o extremismo. O “Brexit” e os independentistas catalães são duas faces do mesmo mal. A prova de que a União Europeia está longe de vencer a crise existencial que viveu nos últimos oito anos e que abriu as portas ao populismo e ao nacionalismo em muitos dos seus Estados-membros, fazendo dos imigrantes e dos refugiados o seu alvo político predilecto. O recuo que sofreram em França ou até na Alemanha não é garantia de que vão desaparecer. E é óbvio que a Europa não sobreviverá um dia ao nacionalismo. Foi feita para acabar com ele. É essa a sua razão de ser.

 

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