Marilyn Monroe, anjo branco de pernas abertas numa praia da China

Um filme delicado sobre a brutalidade da sociedade chinesa: Angels Wear White, de Viviane Qu, uma surpresa na competição em Veneza.

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Angels Wear White, de Viviane Qu dr
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Angels Wear White, de Viviane Qu dr

É nas cuecas de Marilyn que começa Angels Wear White, de Viviane Qu, debaixo do vestido branco do Pecado Mora Ao Lado (Billy Wilder, 1955), sequência que impôs e devassou uma pin up, que desvendou uma intimidade e acabou com ela — o casamento com Joe DiMaggio, por exemplo, veio por ela abaixo com essa cena. (Teria sido Billy Wilder um homem do exploitation?).

É debaixo da saia de Marilyn que Mia, uma adolescente, tira fotos e filma com o telemóvel. É recepcionista de hotel numa cidade de praia da China meridional que é velada pelo kitsch da estátua bigger than life de Marilyn Monroe. No Inverno o clima é suave, os recém-casados escolhem-na para serem fotografados a cavalo.

Mia testemunha, numa noite, a entrada de cerveja num quarto alugado por duas adolescentes. Depois, entra um homem de meia-idade, pessoa graúda na cidade, força a sua entrada, eventualmente violenta-as – não se descobre o que se passou, os médicos confirmam que o hímen das meninas permanece intocado (há um plano de pernas abertas de uma delas...), mas intocável é mesmo a condição do agressor.

Mia, como a Rosetta do filme dos irmãos Dardenne, tem de fazer pela vida nessa cidade que se construiu na diluição de fronteiras entre legalidade e ilegalidade, moralidade e a imoralidade. Todos, como se participassem num acordo tácito, como nas cidades de fronteira, desoladas, do western, abdicaram de uma parte da sua humanidade. Mia tem uma motoreta. Tem um vídeo como prova de que algo se passou naquela noite. E uma peruca loura que sobrou do suposto estupro...

Na segunda longa-metragem de Vivian Qu (concurso) as pernas abertas são a imagem-fantasma. O filme mapeia um território devassado, em que já não há separação entre a inocência e a culpa. Tal como, em The Taste of Rice Flower (secção Giornate degli Autori), Pengfei, o realizador de Underground Fragrance (2015) e argumentista de Stray Dogs, de Tsai Ming-liang, se alimenta — com elegante ironia, a fazer o burlesco aparecer e a organizar miniaturas e a desequilibrá-las — da desordem que o progresso trouxe a um mundo rural e místico. Pengfei não escolhe campos. Há quem o critique por isso, como se se tivesse perdido – mas não, isso é que alimenta em The Taste of Rice Flower um sentimento de irremediável, adiando sempre a redenção, nunca (se) resolvendo.

Vale também fazer exactamente o contrário. Vivian Qu, por exemplo, coloca-se do lado de Mia. Sente-se responsável por um ponto de vista sobre a China contemporânea e não quer apenas documentá-la. Abre as portas a Mia no final. Acaba com a exposição de Marilyn, destruindo a estátua. Se calhar até as salva, Mia e Marilyn. Vivian Qu foi a realizadora de Trap Street, em 2013, e a produtora de Black Coal, Thin Ice, de Diao Yinan, que receberia o Urso de Ouro em Berlim 2014. É uma surpresa nesta competição este filme delicado sobre a brutalidade.

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