O ópio vitoriano do povo

Uma pequena surpresa pelo meio do refugo que tem andado a estrear: um mistério londrino que parece Se7en escrito por Agatha Christie e filmado pela Hammer.

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Os Crimes de Limehouse: caso raro de um “pequeno” filme com mais cabeça do que muitos “grandes”

O título pode parecer sensacionalista, mas é de propósito. É que o pedigree da segunda realização do americano Juan Carlos Medina é bastante intrigante: baseia-se num romance de 1994 do escritor inglês Peter Ackroyd, conhecido pelas suas biografias de Shakespeare, Dickens, Chaplin ou Hitchcock, e insere personagens reais (como Karl Marx ou o actor Dan Leno) numa trama policial com o seu quê de grand guignol, que deve tanto ao gótico como a Agatha Christie.

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Por trás dessa trama policial, o que se propõe é uma crítica brutal à “sociedade do espectáculo”, instalada numa Londres vitoriana que não é assim tão diferente dos nossos dias, onde o público sedento de sangue se precipita para os julgamentos ou para os teatros de music-hall em busca de emoções fortes.

Os crimes sanguinários do “Golem” que percorre o bairro de Limehouse, cujas vítimas parecem não ter relação entre si, dão ao povo aquilo que ele quer de uma maneira estranhamente consciente do seu estatuto. É isso que intriga o inspector Kildare, encarregue do caso: a sensação de que o assassino, primo afastado de Jack o Estripador, está a encenar, com cada crime, um desafio ou uma crítica ou um aviso à sociedade da época, e que há uma lógica diabólica escondida por trás da apresentação mais ou menos grotesca dos crimes.

A metáfora dos reality shows, do “ópio do povo”, não é subtil (afinal, Karl Marx é uma das personagens do filme), mas o modo como Medina encena o cocktail, algures entre Mike Leigh, os velhos filmes da Hammer e o Se7en de David Fincher, é inteligente e está muito bem sustentado pela impecável reconstituição de época e pela solidez dos actores.

Os Crimes de Limehouse não é um filme com ambições à “primeira linha”, o que o torna francamente simpático, mas também não se contenta em ser mais um filme de género (mesmo que as pistas falsas e a solução final sejam relativamente previsíveis para os conhecedores). E, pelo meio de todo o “refugo” que tem sido despejado nas salas nas últimas semanas, é o caso raro de um “pequeno” filme com mais cabeça do que muitos “grandes”.

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